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Canalha

  • Restaurantes
  • Belém
  • 5/5 estrelas
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  1. Canalha
    Francisco Romão Pereira João Rodrigues e Lívia Orofino
  2. Canalha
    Francisco Romão Pereira
  3. Canalha, João Rodrigues
    Francisco Romão Pereira João Rodrigues
  4. Canalha
    Francisco Romão Pereira Lívia Orofino e João Rodrigues
  5. Canalha
    Francisco Romão Pereira Lula de torneira grelhada e manteiga de ovelha
  6. Canalha
    Francisco Romão Pereira Tortilha aberta de camarão e cebola
  7. Canalha
    Francisco Romão Pereira Raspado de presa de vaca
  8. Canalha
    Francisco Romão Pereira Iscas e pataniscas
  9. Canalha
    Francisco Romão Pereira
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A Time Out diz

5/5 estrelas

Lá para Belém, nasceu um monumento à cozinha ibérica. Alfredo Lacerda rendeu-se à nova casa do chef João Rodrigues.

O momento decisivo aconteceu quando pus a primeira garfada de favas com entrecosto na boca. Guisar favas é uma coisa simples. Mas cozinhá-las na perfeição, deixando-as com a pele intacta e tenras, é outra coisa. 

Isso só se consegue com cuidado e técnica. Estas favas estavam naquele instante da temporada em que ainda surgem viçosas, mas já têm estrutura e sabor para se baterem com um entrecosto.

É notável, também, que o molho tivesse uma espessura aveludada, com os sabores todos do refogado – e da cozedura da leguminosa e das carnes –, mas não fosse um creme de fine dining. Era um molho enorme e perfumado de coentros. 

As favas com entrecosto do Canalha foram as melhores de que me lembro de comer – e foram elas a convencer-me, definitivamente, de que o restaurante liderado por João Rodrigues é mais do que uma vitrina de produto de luxo para ricos e foodies exibirem nas redes sociais. Sendo que a vitrina é extraordinária.

Aliás, num almoço, semanas antes, fora muito feliz por causa dessa vitrina. Na verdade, tive a refeição mais extraordinária do ano à sua conta. 

A meio da semana, eu e um amigo arriscámos tentar uma vaga num almoço tardio, ao balcão, sem reserva. A ideia seria provar os pratos do dia, mas a minha companhia – como quase toda a gente que vai ao Canalha – queria correr a carta. Interveio, então, o chef João Rodrigues (que nos reconheceu). Para as entradas, ficámos nas suas mãos, para as saídas também. 

Arrancámos com dois pastéis de bacalhau, que na verdade são bolinhos à maneira do Porto, com muito bacalhau desfiado e pouca batata – e é assim que eu gosto deles. Fritura impecável, dificilmente se encontra melhor.

O que se seguiu foi um disparate de coisas boas do mar. Eis as melhores vieiras de sempre, gordas e suculentas. Depois, chegaram uns percebes do tamanho de polegares, acabados de cozer. E ainda gambas do Algarve, já descascadas, só um calorzinho e já está, de uma delicadeza amanteigada. Mesmo antes do prato principal, ainda aterrou no balcão um pratinho de grão com sames de bacalhau, a preparar o que estava por vir. 

Eis, então, a tranche de pregado. Já sabíamos que ia ser um petisco raro, porque João Rodrigues tinha tirado da vitrina dos frescos um exemplar bojudo, ainda com a pele cheia de goma, oito quilos de um animal notável. O chef cortou-lhe então um pedaço da barriga e fez a sua magia na grelha. 

O peixe apareceu sobre uma emulsão de pil pil, o molho extraído dos sucos e da gordura do bicho, tratamento comum no Norte de Espanha, em particular no célebre restaurante Elkano, no País Basco, terreno de incursões e inspiração para João Rodrigues. 

Eu e o meu amigo dissemos muitas asneiras de prazer enquanto partilhávamos esse lombo de peixe. Estávamos tão felizes que, sabendo que haveria um preço a pagar, deixámos fluir o instante como se o mundo acabasse a meio da tarde. 

Colocava-se contudo a questão. Terá sido um privilégio raro? Terei beneficiado de uma simpatia especial da parte do chef? 

Na primeira refeição que fiz no Canalha saíra menos impressionado. As expectativas eram altíssimas, em parte impulsionadas pelas hordas de influencers que lá estacionaram desde finais de 2023, depois da inauguração. Nesse almoço inicial, a salada de batatas (à maneira da salada russa) tinha os legumes no ponto, crocantes, mas vinha gelada, sem uma maionese bem montada. E aos ouriços, apesar de saborosos e frescos, faltava-lhes ovas. 

Seguiu-se um dos pratos mais badalados da casa: o carabineiro com batatas fritas, o ovo frito rasgado por cima. O carabineiro estava fresco, elástico, limpo, bem tratada a cabeça no prato, que é onde está o ouro. Ainda assim, achei que uns ovos rotos não seriam o melhor uso para dar a um crustáceo tão delicado e a 29 euros. 

No final do almoço, paguei quase 70 euros, com uma garrafa de vinho a meias. Foi uma estreia boa, mas desencontrada com a narrativa posta a circular. Ao contrário do que se aventara nas redes sociais e um pouco por todo o lado, o Canalha não me pareceu: 1) um restaurante de bairro na Ajuda; 2) um restaurante onde se podia comer de forma acessível. 

Mesmo que o Canalha estivesse na Ajuda – está nas costas do MAAT, mais perto do coração de Belém do que do coração da Ajuda — nunca seria um restaurante de bairro da Ajuda. Um restaurante de bairro é um restaurante onde vão as pessoas do bairro. Nas três visitas que lá fiz, vi pessoas de toda a Lisboa, de todo o país. Vi pessoas que vieram de propósito do Porto para lá ir comer. Vi o maior aglomerado de gourmets e influencers dentro de uma sala. Ninguém do bairro.

Tem charme a ideia do restaurante de bairro, mas não cola. Como também não cola que seja um restaurante acessível. Para mim, pelo menos. 

Dito isto, há coisas que não são acessíveis e que valem a pena. E, sim, a minha última refeição alterou a percepção da primeira, no preço e não só. Não sendo acessível para a maioria das pessoas, o Canalha é um restaurante com uma relação preço-qualidade justa, tendo em conta a matéria-prima e a confecção.

Na última refeição com pratos do dia, João Rodrigues não estava presente. A substituí-lo Lívia Orofino, que o chef trouxe do Feitoria, o estrela Michelin do Altis Belém onde se fez chef principal. Voltei a sentar-me ao balcão, junto à tal vitrina, que é o melhor lugar do restaurante e onde achei o serviço mais próximo.

O objectivo era não ceder a tentações (bem, só à enguia fumada dos irmãos Norinha, com viveiros no Baixo Mondego; e ao pão, muito bem tratado, servido com pratinho de azeite suave, mas distinto e azeitona galega temperada). Nas bebidas, fingimos que não vimos a carta de vinhos (bem escolhida, sem fundamentalismos conservadores ou progressistas) e ficámo-nos pelas cervejas, servidas como cañitas, ou seja, em copos pequenos. 

Com o meu parceiro, rachámos primeiro o prato do dia de peixe, bacalhau à Brás: batata frita a sério, o ovo a dar humidade sem coalhar, bacalhau em lascas. E, por fim, as favas. Oh, Deus. 

Quando veio a factura, foram 30€ a cada um, mais do que justo. Não é uma pechincha, não dá para almoço diário de pessoas da classe média, mas devemo-nos lembrar que, por este preço, na Lisboa de hoje, come-se uma bosta qualquer sem nenhum cuidado. 

Em síntese. João Rodrigues está a investir num habitat que adora. Acho que está feliz como nunca e será uma pena desviarem-no para um fine dining, algo que é suposto acontecer até ao final do ano, com a abertura anunciada do Monda, do mesmo grupo. Ou então não. Ele saberá o que o fará mais feliz – sendo certo que chefs felizes costumam resultar em restaurantes felizes. 

Aqui, João Rodrigues assume a sua devoção às casas espanholas de excelência, com produto de topo e ambiente de cervejaria moderna, mas traz também as regiões de Portugal que calcorreou nos últimos anos, no âmbito dos projectos Residência e Matéria. Nesse sentido, o Canalha é a concretização mais elevada que vimos em Portugal do iberismo culinário. 

Os portugueses mais tradicionalistas e ignorantes poderão ficar indignados, mas a verdade é esta: o iberismo culinário faz sentido. 

Não há outro país com tantas raízes comuns com as de Portugal, na culinária como noutras coisas, quanto Espanha. Partilhamos uma herança histórica, os povos que por cá passaram. Partilhamos o mesmo mar e o mesmo sol, o peixe frito e o escabeche, as feijoadas e os cozidos, a devoção aos bivalves e ao porco. 

Não se indignem. Aproveitem. E se o nacionalismo bater com muita força, consolem-se: em Espanha não se arranjam favas com entrecosto destas.

Alfredo Lacerda
Escrito por
Alfredo Lacerda

Detalhes

Endereço
Rua da Junqueira 207
Lisboa
1300-338
Preço
30-100€
Horário
Ter-Sáb 12.30-23.00
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