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Jorge Cruz
© Joana LindaJorge Cruz

Jorge Cruz: “Fui encontrando formas de me reapaixonar pela música”

O antigo timoneiro dos Diabo Cruz passou os últimos anos a aprender a viver com a tinnitus. ‘Transumante’ é o primeiro fruto desta aprendizagem que partilha connosco.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Jorge Cruz não sabe precisar o ano, lembra-se apenas que andava em digressão com os Diabo na Cruz e se encontrava “super cansado”. “Estava com o [antigo companheiro de banda, B] Fachada, perto da Serra da Estrela, entre concertos, e descemos para um riacho. Ficámos ali, a fumar um cigarro e a conversar, e eu pergunto-lhe porque é que não existe música que soe a isto”, recorda. “Que soe a este riacho?” No seu novo disco, Transumante, tenta responder a essa pergunta. “Vivo no campo há uns anos, e tenho investigado o que é a vida no interior. Tento traduzir a paisagem [nas canções]; ou encontrar um cruzamento qualquer entre a paisagem, a língua e a música, que vá ao encontro do que sinto às vezes.”

Nada disto é totalmente novo. Da última vez que tínhamos falado, em 2018, antes da separação dos Diabo na Cruz, o músico já tinha trocado Lisboa por “uma zona pacífica, de aldeia”, e dizia que não se identificava “com a vida na cidade”. Mas o diagnóstico de tinnitus, um zumbido constante nos ouvidos, acelerou o fim da banda e obrigou-o a repensar a sua relação com a música. “Muita gente vive [com estes zumbidos]. Só que a minha situação não é propriamente um tinnitus de músico, mais gradual”, explica. “Surgiu de uma situação de choque acústico – um miúdo gritou-me com um tubo no ouvido. Portanto, é mais parecido com o que acontece às pessoas que são expostas a explosões, a situações que acontecem de um momento para o outro. E penso que o volume também é muito diferente, [mais alto do que] aquele que sentimos, gradualmente, quando temos exposição a som alto durante muito tempo.”

Na sequência do diagnóstico, teve de mudar de vida. “Era algo de que estava a precisar”, reconhece. “Porque as tournées, sobretudo com a intensidade, a paixão e a entrega que lhes dediquei ao longo de uma década, eram muito exigentes, e já estava a meio dos 40...” Deixa-se rir. “A energia já precisava de ser dirigida para outras coisas.” Assume, no entanto, que não foi fácil. “Durante um tempo fiquei sem vontade de fazer ou sequer de ouvir música. Mas, ultrapassado esse choque inicial, fui encontrando formas de me reapaixonar”, conta. “Por exemplo, quando chegava a casa de alguém e havia uma viola de cordas de nylon, afinava-a e tocava. Isso não era nada ameaçador para mim. [E comecei a pensar] como é que faria se tivesse um repertório todo novo que pudesse ser tocado nessa viola.”

Desse pensamento inicial, e de pesquisas posteriores, começaram a brotar canções. E a ganhar forma discos. O Transumante que agora se escuta online, com ecos do fado e de The Cure, de Fausto e de Dylan, é o terceiro destes projectos – apesar de ter sido o primeiro que partilha com o público. “Tinha um disco terminado, as maquetes todas feitas – uma ideia anterior até ao Lebre de Diabo na Cruz. Mas depois foi para a gaveta porque me pareceu que o tempo dele tinha passado. Já não me estava a identificar. Então comecei a preparar um segundo disco, após essa descoberta da viola. Tinha muitas ideias, e uma noção clara do que queria fazer, mas durante esse processo apercebi-me de que havia dez ideias que pertenciam a um terceiro universo, que é este disco”, detalha. “Ou seja, este disco é o terceiro. Está um a meio, que é o segundo. E está um completo, que é o primeiro.”

Transumante, justifica, foi o primeiro a ser editado “porque esta era também a música mais una. As outras ideias são mais variadas e mais para fora. E como estive algum tempo longe das pessoas, quis apresentar um objecto mais centrado.” O cantor e compositor não põe de parte regressar às restantes ideias e “levar os [outros dois] discos até ao fim”. Não agora, porém. “Às vezes é difícil sincronizar os meus tempos com os tempos das edições e do que está a acontecer”, assume. “Mas tenho quatro discos praticamente [prontos], que poderia gravar amanhã, se tivesse a energia para isso. E a vontade.”

Jorge Cruz
© Joana LindaJorge Cruz

Um homem com uma missão

Nos dez anos que separaram a edição do EP Dona Ligeirinha e do álbum de estreia, Virou!, logo em 2009, e o último concerto, em 2019, os Diabo na Cruz foram uma banda irrequieta. Tocaram de norte a sul, nas principais salas do litoral e em palcos improvisados no interior do país. Não só por necessidade, mas porque Jorge Cruz era um homem com uma missão: “devolver às pessoas a sua própria cultura”. “Havia o desígnio de ir de terra em terra, de porto em porto, e trazer pessoas para a causa, para tornar possível o que existe hoje, tantos miúdos a fazerem música com inspiração na nossa própria cultura, das mais diferentes maneiras. Também para quebrar preconceitos: o que era fixe, o que era foleiro”, sumariza. “O conceito de Diabo na Cruz era mais apolíneo, mais populista, no sentido de trazer as pessoas para uma vivência que passasse a fazer parte das vidas delas.”

Refere-se ao velho grupo como “uma espécie de ensaio teórico sobre o que uma música popular portuguesa poderia ser no século XXI” e combinada com outras referências – neste caso, o rock alternativo anglo-americano. “Tentámos entrar onde aquele tipo de música não entrava, nos festivais, nas publicações, nos programas. Pôr a malta que acha que gosta de música cool e que não ouve essas foleirices a ouvir essas foleirices. De repente, já andavam com lenços de Viana no meio do Bairro Alto e já era fixe”, defende. “Foi algo que teve o seu tempo.” E que abriu portas para outros artistas – das Sopa de Pedra a Pedro Mafama ou João Não & Lil Noon – que nos últimos anos têm aproximado as músicas populares portuguesas das referências globais que cresceram a ouvir e a absorver.

Agora a minha investigação é outra, é diferente. Continua a andar em volta do que é a música de raiz. E em volta da criação de linguagens. Mas no sentido de tentar resgatar mais linguagens para um contínuo, para um legado, para que haja várias hipóteses de fazer música que não seja tradicionalista, que não seja meramente reverente, nem seja divorciada do que é a nossa cultura.” Um processo que define várias vezes como “mais interior” ou “mais do interior”. Nesta fase, os concertos parecem-lhe menos importantes, momentos mais “especiais”. Algo que faz “para aquelas pessoas que realmente estão disponíveis para o meu interior e para esta linguagem, que não é necessariamente uma linguagem agregadora. Quer dizer, eu acho que pode ser agregadora, mas é mais…” Faz uma pausa. Faltam-lhe as palavras, coisa rara. “Mais vulnerável. E com mais sombras.”

Só no ano passado, quatro anos depois da separação dos Diabo na Cruz e dos últimos concertos, já com essa “investigação” mais adiantada e com resultados para apresentar, é que voltou a pisar os palcos – da Casa da Música (Porto) e do Teatro Maria Matos (Lisboa). “Pensava que já teria [o Transumante] terminado naquela altura, porque comecei a gravar em Outubro, Novembro, e os concertos foram em Abril.” Só que não. “O disco acabou por ficar pronto apenas em Dezembro deste ano. Demorou um ano e tal.”

Dentro de um mês e pouco vai voltar às mesmas salas, respectivamente a 4 de Abril, no Porto, e no dia 9, em Lisboa. Ainda está a ponderar o alinhamento, a decidir quão diferentes estes concertos serão dos que deu em Abril de 2023. Todavia, a abordagem será a mesma, apenas ele e uma viola clássica. Sabe que as novas canções vão estar mais despidas do que no disco. E que não serão as únicas. “Toco de tudo. Umas coisas minhas antigas, músicas de Diabo na Cruz, outras deste disco, e algumas que compus para outras pessoas.”

Entre as canções que compôs para os seus pares, e que pode ou não revisitar ao vivo, estão êxitos como “Dia de Folga” (para Ana Moura) ou “Rosa Sangue” (dos Amor Electro). “Maré de Sorte”, da fadista Teresinha Landeiro, é o mais recente single saído da sua pena. E é o trabalho de compositor que lhe permite viver da música, mesmo sem tocar concertos. Isso e “não ter de responder à especulação imobiliária das grandes cidades”, brinca, com um misto de desânimo e resignação. Afiança que é um lavor “muito entusiasmante”, assumindo-se como “um fã de música pop, ainda que sempre com uma ligação à cultura”. “É mais aí que está a minha profissão, digamos assim. O que me liberta para escrever depois o que me apetecer para mim próprio.” E para partilhá-lo connosco, no seu tempo.

Teatro Maria Matos. 9 Abr (Ter). 21.00. 20€

Continuamos à conversa

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