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Festival de Avignon, 2021. Apesar da pandemia e da ventania que se faz sentir, o temível Mistral, típico da região, o teatro aproveita uma aberta no confinamento e prossegue, embora com as necessárias cautelas. Num dos principais locais do evento, Isabelle Huppert interpreta o papel de Lioubov Andreieva Ranevskaia em O Cerejal, de Anton Tchékov, numa encenação do director do festival, o português Tiago Rodrigues. Noutro sítio, Fabrice Luchini prepara um dos seus popularíssimos espectáculos a solo de leitura e comentário de textos de grandes autores franceses e universais, no caso, Nietzsche e Baudelaire.
O realizador Benoît Jacquot seguiu-os informalmente com a sua câmara nos dias que antecederam as respectivas representações, filmando-os a viajar nos carros, descontraídos ou ansiosos nos bastidores, a falar ocasionalmente com ele, com as directoras de fotografia, com membros da equipa ou com pessoal e técnicos dos locais onde se vão apresentar. Mas sobretudo a ensaiar, a trabalhar a matéria-prima do ofício de actor: as palavras. O resultado final está no documentário De Cor (ações) (Par Coeurs, no original), que mostra Huppert e Luchini a lutar com os seus respectivos textos, a falar sobre eles e a memorizá-los, discorrendo sobre os problemas que apresentam, as técnicas que implicam e os prazeres que proporcionam.
Os espectáculos dos dois actores (que partilham o amor e a entrega à sua arte, e o respeito do texto e do público) são completamente diferentes. Isabelle Huppert está a interpretar um clássico do teatro integrada num elenco, Fabrice Luchini encontra-se em cena sozinho e simultaneamente como declamador e comentador, e os seus métodos são por isso bastante diferentes. Jacquot mostra Huppert a esbarrar numa réplica, a repeti-la sem parar enquanto não encontra a maneira que considera certa de a dizer, incomodada com a situação, a hesitar, a referir onde e porque é que falhou; e Luchini a procurar a articulação ideal, a entoação correcta, o tom perfeito, e a teorizar entusiasticamente sobre a melhor maneira de o fazer. Pelo meio, o realizador instiga-os a dizer se sofrem ou não de medo do palco (“le trac”), e o que pensam sobre ele.
Não há em De Cor (ação) a menor preocupação ou presunção de ser exaustivo ou “didáctico”, embora pelas características do seu espectáculo e pela personalidade expansiva e verbo copioso, o documentário tenda a ser dominado pelo actor. Onde a parte de Isabelle Huppert é mais minimalista, fugaz e “impressionista”, a de Fabrice Luchini é mais ilustrativa, explicativa e assertiva. É vê-lo a citar de forma arrebatada o seu mestre Louis Jouvet (o “ataque da frase”) ou a saborear uma frase particularmente feliz de Nietzsche. O único reparo que podemos fazer a De Cor (ação), que não chega a durar 80 minutos, é ser curto, decepcionantemente curto. Queríamos mais dos dois, mais de Huppert vulnerável, sob pressão e a tentar amestrar o seu papel, mais de Luchini empolgado e a interpretar duplamente, os textos que lê e os seus significados. Mais palavras e mais labor, mais dificuldades e mais deleite.