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Ju Bock
Francisco Romão Pereira

Ju Bock, a artista brasileira que fez de Cascais a sua casa

Produz grandes peças de tapeçaria, inspiradas nas suas vivências ou nos elementos. A primeira exposição de Ju Bock inaugura-se esta quarta-feira.

Escrito por
Ricardo Farinha
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Recomeçar a vida aos 52 – porque não? Foi isso que Juliane "Ju" Bock decidiu fazer – em Cascais e dando asas à criatividade como nunca antes. Agora prepara-se para fazer a sua primeira exposição de sempre na Galeria Barros & Bernard, em Lisboa. “Raízes” é inaugurada esta quarta-feira, 8 de Maio, e fica patente durante um mês, até 8 de Junho.

Nascida e criada no interior do Rio Grande do Sul, cresceu num Brasil rural, num meio em que um dos principais motores de desenvolvimento são as lãs. É precisamente este material que utiliza nas suas obras, os fios que molda no tear para criar composições coloridas, repletas de textura, que reflectem uma parte de si ou um elemento em particular que lhe seja importante.

Com uma família ligada ao artesanato e aos trabalhos manuais, sempre fez experiências criativas nos tempos livres. “As artes sempre fizeram parte da minha vida”, conta à Time Out. “Estudei artes plásticas, sou jornalista e guionista de formação, mas as artes sempre fizeram parte de mim e venho de uma família em que o artesanato é muito forte. O bordado, o tricot, o crochet, a pintura... As minhas avós e a minha mãe ensinaram-me a tricotar. A minha filha mais nova faz crochet. Somos uma família de mulheres muito fortes. Então sempre pintei telas, mas sempre dei como presente, nunca comercializei nada.”

Ju Bock
Francisco Romão PereiraO estúdio na sua casa

No final de 2021, durante a pandemia, sentiu a necessidade de explorar algo novo, de encontrar um meio para onde pudesse canalizar a sua energia. “Precisava de um desafio, de aprender alguma coisa. E fui para a tapeçaria. Comprei um tear, queria que fosse um trabalho manual e que estivesse relacionado com a lã, porque eu vinha de toda essa tradição. Sempre fiz os meus próprios blusões ou para a minha família. Logicamente, tive de aprender a tecer e a fazer toda a produção, mas tinha uma familiaridade com o fio. Comprei aulas online e comecei a fazer, foi rápido. Quando tens uma bagagem artística, é só aplicar a técnica. A criatividade já lá está e vamos embora. Mal sabia eu que iríamos morar em Portugal.”

Antes de se mudar para Cascais, Ju Bock viveu 17 anos fora do Brasil à boleia do trabalho do marido, que tinha um cargo de topo na cervejeira Budweiser. Passaram pela Bélgica e pela Suíça, estiveram vários anos nos Estados Unidos da América. “Só que o meu marido entretanto reformou-se, as nossas filhas moram em Londres, nós estávamos muito longe e decidimos voltar para a Europa. E tínhamos de morar perto do mar. Também estávamos com saudades da língua portuguesa.”

Escolheram Cascais pela tranquilidade e pela proximidade ao oceano. E Ju deixou-se encantar pelo “berço do tear” que é Portugal, tendo visitado Portalegre ou Castelo Branco para se envolver com a tradição. Teve aulas com a artista Diana Meneses Cunha em Sintra e quer ir a Manteigas conhecer as lãs locais quanto mais puras e quanto menos químicos levarem durante o processo de manufactura, melhor.

Ju Bock
Francisco Romão Pereira"Raízes" dá o nome à exposição

Memórias afectivas

A exposição “Raízes” é composta por 10 peças únicas. Ju Bock começou a trabalhar nelas em Agosto do ano passado. Aquela que dá título à mostra foi a que demorou mais tempo a ficar pronta  foram precisos três meses e meio de trabalho diário. “Para esta, os fios foram todos trazidos do Rio Grande do Sul”, explica enquanto nos guia pelo seu estúdio, que fica no piso de baixo da sua casa, e que pode ser visitado por marcação. “Vieram de uma fazenda que cria as ovelhas, faz toda a manufactura e o tingimento.” Em vários tons castanhos e verdes, a ideia foi retratar diversas ervas e cores típicas daquela região. “Mas claro que remete para as memórias afectivas das pessoas que a vêem. Já tive amigas que olharam e disseram que lhes fazia lembrar o Alentejo. Acho que a arte é isso: tu buscas na tua memória afectiva a tua história nas obras. Os relevos do Rio Grande do Sul estão aqui, com as suas estações mais secas e produtivas, com todos estes verdes.”

Outra das obras mais importantes chama-se “Mar”. Filha de um torneiro mecânico, que ainda hoje tem uma loja de ferragens, Juliane cresceu a 700 quilómetros do Atlântico. “Os meus pais não tinham grandes posses, então trabalhava-se o ano inteiro para a gente fazer 15 dias de praia. E esperávamos o ano todo por esses 15 dias. Então, a chegada ao mar era mágica. Primeiro, eu morava numa região de terra vermelha, onde uma pessoa se suja muito para qualquer coisa. Roupa branca é impossível, por exemplo, suja-se muito facilmente. Então chegar ao mar, à areia, e brincar e não me sujar, era uma novidade para nós. Toda a composição o cheiro, o mar, sabendo que só íamos ficar 15 dias… Nós queríamos absorver tudo daquele espaço. E sempre procurei o mar nas férias. O mar acalma-me, faz-me bem e nada mais típico de mim do que ter o mar deste tamanho com estas cores”, diz enquanto aponta para a peça.

Ju Bock
Francisco Romão PereiraA artista ao lado do "Mar"

“Vivi estas cores todas na minha vida. E escolhi vir para Cascais também por causa do mar. É paz e uma memória afetiva muito importante para mim.” Daí que não seja estranho que outras obras suas tenham como títulos “Ondas” ou “Areia”. A mais espontânea de todas foi “Caos”, feita na madrugada após uma viagem ao Havai, com muitas horas de jet lag. “Era meia-noite, não tinha sono, os fios já estavam prontos no tear, ia começar uma peça, já tinha algumas cores, mas não estava a funcionar. Então tirei tudo e comecei do zero. Às 6.15 da manhã estava pronta e assinada. Então, não podia ter outro nome que não este.”

Ju Bock
Francisco Romão Pereira"Eu"

Há ainda a “Eu”. “Ela é a Ju: colorida, dinâmica e enérgica. Tem altos e baixos e é imperfeita. Sou eu [risos]”, diz, antes de explicar o processo de criação. “Geralmente escolho os fios e as cores, coloco-os no chão em frente do tear e a criação é linha a linha, totalmente intuitiva. As ideias vão surgindo. É um trabalho solitário, mas é gostoso. Já resolvi muitos problemas meus em frente ao tear. Não deixa de ser a minha sessão de terapia.”

Já estava a conceber algumas destas peças quando Euclides Barros, um dos responsáveis pela galeria onde vai expôr, descobriu o seu trabalho ao visitar a sua casa. “Ele veio cá porque tinha feito algumas peças de móveis para nós. Depois viu no tear o ‘Areia’ e disse: 'É você que está a fazer isto? O mundo precisa de conhecer a sua obra.' E foi a primeira vez que vi alguém exterior à família ou aos amigos realmente encantado com uma peça que eu tinha produzido.”

Ju Bock
Francisco Romão Pereira

Depois de 17 anos completamente dedicada à família, Ju Bock sente que chegou a hora de se dedicar a si própria e à sua paixão. “Uma mãe expatriada com três filhos tem de se focar na família, então abdiquei da minha vida profissional durante esses 17 anos. Fui mãe, dona de casa e agora que o meu marido se reformou os holofotes da casa viraram-se para mim. Ele disse: 'Agora é a tua vez e vou dar-te todo o apoio para que possas concretizar aquilo que quiseste fazer e que nos meios onde vivemos não dava.' Ele assumiu a casa e o nosso filho pequeno para eu me focar na tapeçaria. E é ele que vai comprar a madeira e a corta para mim, ele fez um destes teares”, aponta.

“Estou muito orgulhosa de mim", conclui. "Tenho 52 anos e estou a começar de novo. Nós nunca começamos do zero, porque vimos sempre com uma bagagem de vida, mas é um recomeço de alguma forma e também é isso que quero mostrar às mulheres e às pessoas no geral. Estamos sempre a tempo, podemos sempre reinventar-nos. Não podemos é ter medo. Infelizmente, a sociedade coloca-nos numa caixa aos 50 anos em que diz: fica em casa, não precisas de produzir mais, já viveste, os teus filhos já estão aí quem os tem mas a vida pode começar de novo. Se está com vontade de fazer alguma coisa, faça. Não se arrependa de não ter feito. É muito bom ter borboletas no estômago de novo, ter esta vontade de crescer e fazer alguma coisa. Idade é só um número, temos é que viver e temos muito pela frente.”

+ O que há de novo em Cascais

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