Ainda não há pouco tempo, o cinema americano era prolífero na produção de filmes infanto-juvenis, que os pais também podiam ver na companhia dos filhos pequenos. A Walt Disney era, naturalmente, o estúdio que dominava esta modalidade de filmes, através de toda uma sorte de títulos que iam de adaptações de clássicos da literatura do género às aventuras de personagens míticas da história dos EUA, como Davy Crockett ou Daniel Boone, e de vedetas de quatro patas como a inesquecível Lassie, passando por comédias familiares que as mais das vezes tinham como heróis crianças ou grupos de crianças amigas, irrequietas e travessas, mas também de bom coração.
Esses tempos desapareceram quase por completo, mas de quando em quando aparece nos cinemas um filme que, pelo espírito que o anima, pela história, pelos protagonistas e pelas suas características gerais, remete para a “era de ouro” do cinema infanto-juvenil. Estas produções já não têm a chancela da Disney, sendo antes independentes com orçamentos modestos e recursos técnicos limitados, mas que compensam estas falhas com entusiasmo, imaginação, sinceridade e um conhecimento profundo da tradição de fitas que representam e a que dão continuidade. Riddle of Fire, a primeira longa-metragem de Weston Razooli, que passou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2023, é um desses filmes.
Passado numa pequena vila do Wyoming, Riddle of Fire tem como heróis dois irmãos, Jodie e Hazel, que com a sua vizinha e grande amiga Alice formam os Três Répteis Imortais, um trio de diabretes como poucos. Têm todos pequenas motos de cross e pistolas de paintball improvisadas, e passam o dia ou a fazer disparates na rua e pelos bosques, ou a jogar jogos de vídeo. Um dia, surripiam de um armazém uma nova consola de vídeo e instalam-se em casa de Jodie e Hazel para jogarem. Só que a mãe dos dois rapazes, que está de cama com gripe, mudou a password da televisão para os impedir de estarem horas a fio metidos em casa a jogar. E diz-lhe que só a revelará – e para jogarem apenas duas horas – se lhe forem comprar uma tarte de mirtilo das que ela gosta à pastelaria da vila.
Mal sabe ela, e nem imaginam os três diabinhos, que uma banal password e uma vulgar tarte de mirtilo – a que se irá juntar mais tarde um ovo de galinha sarapintado – vão lançar Jodie, Hazel e Alice numa aventura de contornos mágicos pelos bosques, indo-os confrontar com um grupo de caçadores furtivos que empalham as presas para vender e com a jovem feiticeira (ou algo parecido com isso) que os lidera, fazer amizade com a filha desta, uma menina chamada Petal com ares de pequena fada, guiar um carro roubado e ter de cantar e dançar num bar de beira de estrada para poderem conseguir o ovo sarapintado atrás citado.
O realizador e argumentista – e também intérprete de uma das personagens secundárias – Weston Razooli pertence a uma geração que cresceu ainda a ver os filmes para crianças e jovens que a Disney fazia e leu os contos de fadas dos Irmãos Grimm e as grandes obras da literatura de aventuras juvenil, mas que já conheceu os jogos de tabuleiro de fantasy clássicos e os videogames. E é também um cinéfilo omnívoro, com gostos que vão da Nova Vaga francesa à anime e aos filmes de Hayao Miyazaki, bem como as fitas da série Os Pequenos Marotos, Os Goonies, Sozinho em Casa ou Dennis, o Pimentinha.
Rodado em 16mm (“para dar um toque vintage”, como explicou Razooli), Riddle of Fire é um conto de fadas contemporâneo que comunga, alegre, gostosa – e por vezes também anarquicamente –, de toda esta miríade de referências, ao mesmo tempo que compartilha da visão infantil dos seus pequenos heróis, e a transmite em todas as peripécias da atarefadíssima intriga. E o realizador tem a plena colaboração dos quatro miúdos que interpretam Hazel (cujas falas têm legendas, por ser um bocado língua de trapos…), Jodie, Alice e Petal com espontaneidade, alegria e um entusiasmo incansável. Alguma (compreensível) falta de polimento narrativo e cinematográfico, e certas (e pontuais) incoerências de enredo, só acrescentam ao charme de Riddle of Fire. Um título que fica por explicar, mas para o caso tanto faz.