
Alfredo Lacerda
Há oito anos que bitaita sobre as casas de comer de Lisboa e Porto. Escreve como um jornalista, pensa como um cliente, come como um abade. Um dia provou pangolim e sobreviveu.
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Há oito anos que bitaita sobre as casas de comer de Lisboa e Porto. Escreve como um jornalista, pensa como um cliente, come como um abade. Um dia provou pangolim e sobreviveu.
Moderno, tradicional e guloso. Alvalade tem de tudo um pouco, uma característica que também se aplica à oferta gastronómica do bairro. E acredite que é uma verdadeira volta ao mundo em muitos, muitos pratos. A Ásia está bem representada, em pratos oriundos do Nepal, Japão, Índia ou China, mas também Itália e, claro, Portugal que tem uma das melhores cozinhas do planeta. Mas antes de rumar a um dos bairros mais completos da cidade de Lisboa, comece por picar esta lista com os melhores restaurantes de Alvalade. Bom apetite e boa viagem. Recomendado: Os melhores restaurantes de petiscos em Lisboa
Apontado como um dos melhores chefs da sua geração, João Rodrigues despediu-se do Feitoria em Abril, sem ter conseguido a tão desejada segunda estrela Michelin, que meio mundo gastronómico afirmava merecer. André Cruz, até então o seu subchefe, foi o escolhido para a sucessão e não se pôs com meias medidas. Em poucos dias, mudou já algumas coisas e, mais importante, criou um novo menu, a que chamou Semente – há um de sete (145€) e outro de nove momentos (160€), havendo duas versões vegetarianas (100€/sete momentos, 120€/nove). Sabe da exigência que tem em mãos e dos holofotes que agora lhe apontam, mas nem por isso vacila. O trabalho, conta, é também de continuidade. O objectivo é esmiuçar ainda mais a relação com os pequenos produtores, um terreno que conhece bem. Tem 27 colmeias, uma horta biológica e criação de animais. “Jamais poderia fugir a uma coisa destas”, diz à Time Out. Ricardo Lopes É mais fácil assumir este cargo por estar em casa?Acho que é mais difícil, sinceramente. Acabei por ficar no lugar de uma pessoa que é altamente respeitada e que, no quadro gastronómico, é muito influente. É um profissional muito exigente e isso eleva um bocadinho a bitola do cargo. E estamos a falar do Feitoria, quem vive aqui todos os dias sabe da exigência. Esperava ficar como chef executivo?Não. Foi de repente. Como é que se recebe um desafio destes?Foi realmente muito inesperado, mas recebe-se com naturalidade. Senti como uma oportunidade e uma situação normal. Vivi bem esta s
Restaurantes de peixe em Lisboa? A resposta mais imediata talvez seja apontar as mesas à beira‑mar aqui ao lado (e também aqui estão), mas também na cidade se come bom peixe fresco, na grelha ou no tacho. Seja em restaurantes onde as bancas se parecem às dos mercados, carregadas de peixes, seja nos mais tradicionais onde os pratos do dia se fazem também de peixe. Nestes restaurantes de peixe em Lisboa e nos arredores há boas esplanadas (algumas para comer com o pé na areia), mas acima de tudo peixe sempre fresco. Recomendado: 18 novas esplanadas em Lisboa para se por à fresca
Dickens é um escritor natalício e a ele devemos parte do nosso imaginário colectivo para a quadra. A ideia de uma família unida, feliz apesar das adversidades, é um legado seu. Mas se o convocamos para aqui não é tanto pelo contributo dado para as celebrações modernas do Natal, é mais pelo início de uma frase que inscreveu na cultura popular a caligrafia vitoriana: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”. Ao longo deste século e meio, abundaram oportunidades para o aplicar às mais diversas situações – e 2021 é uma delas. É uma descrição rigorosamente resumida do que vivemos este ano. Começou mal, muito, muito mal, e nunca, até hoje, deixou de ser assombrado pelo espírito do Inverno passado. E no entanto melhorou. Melhorou muito. A reabertura das lojas, dos restaurantes, dos bares, das festas e dos festivais – da vida, enfim – foi num crescendo de entusiasmo e entrega que nos deu a sensação de estarmos a viver o melhor dos tempos. Como na Time Out estamos habituados a deter o olhar no lado positivo das coisas, também o faremos para este ano de experiências polarizadas. É hora de fazer o balanço e celebrar quem se destacou nas áreas que acompanhamos semana após semana, dia após dia. É hora de regressar aos Prémios Time Out, desta feita com 32 categorias. Ora então, os vencedores são…
Alejandro Chávarro é um jovem adulto facilmente reconhecível, sempre de lenço ao pescoço, como um dealer de arte com a sala cheia de gatos e um piano de cauda. Natural da Colômbia, fez carreira em salas parisienses e brilhou no L’Astrance, de Pascal Barbot, um três estrelas Michelin progressista. Desde 2017 que espalhava a palavra de pequenos produtores de vinhos franceses em restaurantes e lojas da especialidade de Lisboa, através da sua empresa Vinhos Livres. Em 2020 voltou às salas, mas driblou as expectativas. Em vez de se instalar num dos grandalhões do fine dining de Lisboa, Chávarro tornou-se co-proprietário deste pequeno restaurante de base vegetariana, na zona de Santos, antes propriedade exclusiva do chef brasileiro João Ricardo Alves. Isto importa por causa do futuro. Com Chávarro, estará o Arkhe a aproximar-se do cone de aspiração do guia francês? Reza a história que a mudança para Portugal do chefe de sala e sommelier ocorreu como num desses filmes de amor de Hollywood. Há quatro anos, foi fazer um retiro de yoga para a Índia e aí se apaixonou por uma portuguesa. Desviado para Lisboa, rapidamente foi acolhido pela comunidade local de naturebas (aficionados de vinhos naturais), em franco crescimento, mas nunca se deixou ficar agrilhoado em facções. Em Junho de 2019, na minha primeira visita ao Arkhe, comi muito bem. Comi como raramente havia comido num restaurante vegetariano em Portugal – acabando mesmo por indicar que alguns dos pratos já tinham pinta Michelin.
Por esta altura, já todos experimentámos a neura do confinamento. Vamos sobrevivendo, mas não há como evitar. Esta merda é fodida.Dizem-me amigos (que eu não sei disso) que uma das coisas mais fodidas é não foder. Está-se sempre com os filhos em cima (maior anti-coiso); ou o parceiro de pantufas perde poderes; ou fica-se assustado com o bicho nos outros – nunca se sabe se aqueles peitorais do Tinder não escondem uma insuficiência respiratória aguda e infecciosa. É tramado. Outro grande problema é a impossibilidade de viajar. Não isso de “vá para fora cá dentro”, um contrassenso. Viajar, mesmo. Sair. Fazer malas. Ultrapassar fronteiras. Ouvir línguas. Viajar, mesmo, dá-nos oxigénio, muda-nos a cabeça de assunto. De sítio. De gente. De comida. Ora, não tendo solução para nenhum dos dois constrangimentos, tenho um analgésico para o segundo. Há take-aways em Lisboa que, momentaneamente, nos podem levar até longe, mesmo que seja só por 45 minutos. Esta semana, por exemplo, quando dei por mim estava no vale de Bekáa, na região montanhosa de Zahlé, Líbano, chinelo no dedo e um calor bom para refrescar com tabbouleh. A responsável pela viagem foi a Colher Torta, que é a Ana Leão. Radicada no Porto, Ana Leão desceu a Lisboa com o segundo confinamento. Sem cozinha própria, o amigo e cozinheiro Zé Paulo Rocha ofereceu-lhe os fogões d’O Velho Eurico, tasca de rapaziada jovem já aqui elogiada, para fazer o que gosta. E ela fez. Actualizou o Instagram, pôs fotos do que ia cozinhando e mont
Da rua, vêem-se as portas altas do edifício do século XVIII, albergue de turistas milionários. Estamos no Silent Living 1728, hotel onde uma noite custa 1160€. Lá dentro, sob um candeeiro gigante, pessoas de copo na mão conversando em trios, como numa vernissage de galeria de arte. Ao meu lado, uma mulher nórdica sexagenária de botas da tropa, meias de rede e Rolex; e um homem gadelhudo que tomaríamos por roadie dos Rolling Stones, não fossem as sapatilhas de autor. O ambiente intimida, mas o chefe de sala Ivo Custódio acode e força as apresentações. Tem um estilo extrovertido, latino solto como um percussionista de maracas – rabo de cavalo e camisa aberta sob o blazer. “Bem-vindo, deixe-me apresentar-lhe as outras pessoas”. Cumprimento o roadie e a rockeira do Rolex, bem como a administradora de uma produtora de cinema. Da Ucrânia. “Há dias, por esta hora, estava a passear o cão nas ruas sem luz de Kiev, sem conseguir ver a um metro de distância. Volto para a semana.” O anfitrião gere os tempos, fazendo um compasso de espera para os atrasados e somando histórias: sobre o edifício (recuperação do arquitecto Manuel Aires Mateus), sobre o vinho Madeira que os comensais bebericam (“Thomas Jefferson brindou com ele”), sobre o quadro do nascimento de Jesus que domina a sala, não particularmente minucioso (“comprado no mercado aqui ao lado”), – sempre usando a língua inglesa (“porque estão aqui italianos, espanhóis, alemães”). Sou o único local entre as 14 pessoas que daí a nada
O meu amigo Viegas garantiu-me que algures entre Queijas e Barcarena encontraria as melhores costelas suínas de todo o universo. O meu amigo Viegas tem uma certa queda para a hipérbole, mas há dias fui lá averiguar. Estava tanto mais interessado quanto cozinho entrecosto assado em casa e, ao longo dos anos, tenho-me debatido com resultados instáveis. É fácil fazer um entrecosto satisfatório: bastam umas pedrinhas de sal e 90 minutos a 180 ºC, no forno. Mas um entrecosto perfeito requer experiência, sabedoria, atenção aos detalhes. Seria o Malagueta o zénite do entrecosto? Antes de me pôr no carro, pesquisei. Na primeira busca no Google, a foto da fachada mostrava um avançado de lona numa moradia suburbana, com a avaliação das “reviews” nos 3,9 pontos. Percebi o rating à chegada ao local. Ultrapassado o avançado, a entrada parecia uma gruta. O sítio estava escuro e frio, sensação aumentada pela negritude dos azulejos. Ao lado, outra sala, mais agradável: paredes forradas a madeira e quadros de moinhos holandeses, ambiente campestre, antigo e incoerente, um certo charme fajuto e original, como um idoso em fato de casamento no aniversário do neto. Dito isto, o espaço acaba por ficar na memória ou, então, é a comida que o eleva. Falemos, pois, de comida. O menu é curto, mas tão importante quanto o que está na carta é o que está na vitrina, logo à entrada. De um lado, vêem-se morcelas e linguiças, do outro peixes e moluscos — tudo para ir à grelha. Podemos encontrar chocos f
Façamos uma abertura à José Quitério. O lugar fica perto da Avenida da Liberdade, mas num recanto bucólico como um pelourinho transmontano. Depois de uma escadaria, chega-se ao Largo do Fala Só, a caminho do miradouro de São Pedro de Alcântara. Eu que fui só, e particularmente introspectivo, pus-me a pensar quem seria o Fala Só. Seria um performer, seria um louco, seria apenas um solitário? Não encontrei respostas na Internet, nem no interior do Nonna. A pequena loja, auto-intitulada “o primeiro fast pasta bar em Lisboa”, é um sítio mínimo, mas muito social. A história repete-se. Estrangeiros a viver em Portugal, no caso quatro amigos italianos, magicam uma forma de por cá se sustentarem. Chega a pandemia e abrem um take away, suportado por redes sociais e talento para as massas e para o cool. O negócio corre melhor do que se esperava e, quando o bicho viral dá tréguas, investem o pouco que têm num espaço modesto, onde já se senta gente, mas ainda apostado no delivery: chegar, pegar e levar. Eventualmente, a coisa corre melhor do que era esperado. Mesmo servindo a comida em boxes de cartão, há gente disposta a pré-pagar 13€ e comer rigatoni in loco, sentadas ao fresco ou mesmo num cantinho apertado lá dentro, inebriadas com Chianti a copo (sem referência da marca, 4,5€) e adoçadas, no final, a tiramisù (5,90€). Neste dia, havia quatro massas à escolha, todas com o rigatoni feito com massa fresca na casa. Uma banhada a molho de tomate e creme de burrata, com pistáchio, bem
Há uma longa tradição de restaurantes com nome próprio. O Jacinto pareceu-me um dos melhores. Jacinto é nome antigo, que remete para uma das personagens mais gastronómicas do escritor Eça de Queiroz. No livro A Cidade e as Serras, Jacinto redescobre as origens familiares e os prazeres do campo. Depois de uma infância sofisticada em Paris, instala-se na Casa de Tormes, no Douro, onde desperta para as iguarias serranas evocadas pelos seus pais: o cabrito assado, as sopas douradas, a canja de galinha, o leitão, o arroz de favas. Um caminho sem retorno. Seria O Jacinto, em Telheiras, esse poiso a cheirar a lenha e tacho, que tanto confortou a personagem de Eça? Seria O Jacinto um caminho sem retorno? A verdade é que é fácil de lá chegar e também fácil de lá sair. Para quem vai na Segunda Circular, corta-se na placa a dizer “Restaurante”, mal passamos o Estádio de Alvalade, e 50 metros à frente estamos numa praceta pacata, rodeada de vivendas antigas. O Jacinto está logo ali, moradia transformada em restaurante, desde 1971. Ao almoço, é frequente vermos berlindas a estacionar com pessoas de fato e gravata. Lá dentro, percebe-se a intervenção de decorador, num redesign que era moderninho em 1990 e que agradará a executivos sexagenários à procura de “casas com qualidade”. Os preços adequam-se perfeitamente ao registo “mete a factura na empresa”. Nem todos os restaurantes cabem nesse perfil. Há restaurantes demasiado caros para pôr a factura na empresa e há restaurantes demasiad
As finanças da restauração são um assunto complexo. Lisboa tornou-se uma cidade com muita circulação de dinheiro, mas o dinheiro não jorra forçosamente nas caixas registadoras dos chefs portugueses. Mesmo que sejam figuras conhecidas, mesmo que apareçam na televisão e saiam em revistas da especialidade. Ter um restaurante de topo implica uma contabilidade difícil. Vai daí, uma das decisões dos chefs tem sido abrirem segundos restaurantes. Ou seja, o chef tem a sua casa bandeira, com degustações compridas, pratos que parecem quadros e gambas apanhadas à unha. Mas depois investe em espaços com escala, desenhados para facturar — sem a pressão de guias de pneus, sem o mesmo rigor conceptual, sem receitas com 20 passos e sem legumes apanhados da permacultura nessa manhã. Foi isso que fez Vítor Adão, chef transmontano há vários anos estabelecido em Lisboa. Apesar de ter apens 32 anos, Vítor já rodou por cozinhas de ponta, entre elas as de Rui Paula e de Ljubomir Stanisic, de quem foi o seu braço direito no grupo 100 Maneiras, entre 2016 e 2018. Depois disso, ainda prestou consultoria na Quinta do Arneiro, até que, em 2019, abriu o Plano, restaurante gastronómico na Graça. O Plano é a casa bandeira de Vítor. É aí que ele faz a sua magia e luta pela perfeição. Nos bons dias, consegue-se lá uma coisa rara e difícil: cozinha de autor, simultaneamente original, depurada e portuguesa. Nada disso tem a ver, todavia, com o assunto desta crítica. O Planto é outro bicho. Instalado na Rua
Há muitos anos que a Rua da Artilharia 1 é a zona dos italianos. La Campania, La Trattoria, Il Mercato, Forno d’Oro, agora este Davvero. São muitos e foram mais. O meu italiano preferido de Lisboa também morou lá. Chamava-se Mezzaluna e, no seu tempo, algures na mudança do milénio, era um ninho de políticos com mundo, actores com dinheiro e publicitários com cocaína. Quando lá fui pela primeira vez, um rapaz de 20 e poucos anos, não tinha nada disso. Estava a iniciar-me no jornalismo e quem me levou foi S., uma assessora de imprensa arguta, que cedo percebeu que a melhor forma de traficar informação privilegiada com o jovem repórter seria através do estômago. Não terá havido grande proveito jornalístico-político na estratégia, mas a verdade é que S., mulher de esquerda perfumada, com um fraquinho por restaurantes de direita, haveria de compartilhar outras mesas comigo. Progressivamente, a conversa começou a desviar-se das vicissitudes da governação para as incidências da colheita anual de trufa em Piemonte e S. tornou-se minha amiga e eu estar-lhe-ei para sempre grato por ter tomado conta dessa factura do Mezzaluna, uns 40€ por cabeça, e me ter iniciado em iguarias estrangeiras. Haveria outros italianos razoáveis em Lisboa, em 2000 (Casanostra ainda em forma, por exemplo). Mas nenhum tinha a energia dada pelo chef Michele Guerrieri. Guerrieri era napolitano e não um empresário tuga deslumbrado com Milão e Veneza. E era um perfeccionista, fazia tudo bem. [Um dos meus livr
Sábado, reserva para as 13h00. O restaurante está em obras, somos encaminhados para o espaço do bar. É uma esplanada protegida com janelas laterais e tecto, com vista para o rio e para a Ponte 25 de Abril. Mas é uma esplanada. Primeira surpresa. Segunda surpresa. A carta está no QR code em cima da mesa baixa, dessas de lounge. E tem rasteira. Parte dela está desactivada, toda a parte que se refere a pratos à carta, mais sérios. “Só estamos a trabalhar com buffet”, diz a empregada de mesa, como se alguém pudesse adivinhar tal coisa, quando em nenhum sítio — redes sociais, site, app de reservas — isso vinha expresso. Coloca-se a dúvida de protestar e partir, mas só protestamos, que somos muitos e temos fome. O buffet tem os clássicos com um cheirinho a Oriente. Amuado, lá peço uma sopa de abóbora e uma shakshuka, hambúrguer para os miúdos, mais croissant com ovos e abacate e uns Benedict com salmão. Estamos já resignados a apanhar sol na tola, esparramados nos sofás e nas almofadas à la riad de Marraqueche, quando chega o hambúrguer. Antecipo-me à rapaziada (privilégio de crítico) e mordo o bicho, um bicho alto, com vários andares, clássico: carne boa, bacon, cebola caramelizada, tomate, maionese de alho. Ui, bom. Ui, bom bom. Só mais uma dentada. Ui, muito bom. Por Goa, Damão e Diu! É um excelente hambúrguer em qualquer parte da Índia e até de Portugal. Eis então a sopa de abóbora Hokkaido e, caramba, também excelente. Um creme sedoso, puré de feijão lá metido, um toque de
Quando pergunto por Chakall, a rapariga fica tensa. “Ele não está”, responde, engolindo as palavras, olhos muito abertos. Costuma cá vir?, prossigo. “Não muito”, atira, enquanto levanta a louça da mesa. Alguma vez o viu aqui?, insisto, já ela arranca apressada para a cozinha. Às vezes, duvido da existência física de Chakall. Nestes dez anos a escrever e a frequentar restaurantes, clubes e comunidades gastronómicas em Lisboa, nunca me cruzei com ele. Aparentemente, Chakall existe, mas só na Internet. Olhando para o seu Instagram, os posts sucedem-se. Faz publicidade a electrodomésticos, a um stand de automóveis em segunda mão, a uma empresa de janelas e portas. Exemplo de um post de Chakall, o influencer. A foto mostra-o relaxado em casa, de turbante (?), olhando para um computador portátil, com uma criança em segundo plano. E diz assim: “Apesar de ter saudades dos dias de verão, a aproveitar o sistema ConceptFolding das janelas da @reynaers_portugal que faz com que a minha sala de jantar duplique de espaço, unindo o interior com o terraço, sabe muito bem ter esta incrível vista nestas tardes frias de nevoeiro enquanto trabalho com a melhor companhia que podia pedir ♥”. O texto parece escrito por um adolescente depois de três shots de absinto, dois charros e um estalo do Will Smith. Pontuação deficiente, erros gramaticais, petas descaradas, confusão. Dito isto, quantos “gostos” teve o “conteúdo” sobre a marquise de Chakall? Quase 5700. 5700 gostos são números para contas d
Há uma tendência que devia envergonhar os lisboetas. Entre tantos conceitos originais tontos e projectos decalcados do Soho e de Belleville, de Trastevere e de Ginza, os restaurantes de cozinha portuguesa definham ou são chutados para a periferia como curiosidades patuscas. Turistas e estrangeiros com residência fixa encavalitam-se em pizzarias e wine bars, michelins e izakayas, burger joints e cozinhas plant based— e ninguém parece interessado num pastel de bacalhau, numa cabidela, numa arrozada de peixe ou num cozido. À excepção de uns quantos portugueses envergonhados, que insistem em honrar a sopa de legumes, o bacalhau com grão e a delícia de nata, escondendo-se em mesas relegadas para os becos da Baixa, a turba anseia é pela mesma modernidade de Berlim e Londres. A culpa não é dos turistas, nem dos expats, nem da cozinha portuguesa. A questão é que os empreendedores do sector, excitados com o mundo cool e posh que viam lá fora, mandaram a culinária tuga às urtigas, desde os anos 2010. Restaram uns quantos templos dourados, como o Solar dos Presuntos e o dos Nunes, ou casas atascadas entretanto despersonalizadas, como o Zé da Mouraria. Mas restaurantes novos de comidinhas lusas, com uma estética contemporânea e uma nova energia, contam-se uma meia-dúzia deles (vide o Velho Eurico ou o Cacué), quase sempre projectos independentes ou unipessoais. Também por isto é de aplaudir o aparecimento do Pica-Pau. Fica no mesmo lugar onde antes viveu o Pesca, com o chef Diogo Nor
Estava a ser aquele cliente maçador e caprichoso, o terror do empregado de mesa. Já tinha querido saber a opinião do rapaz sobre os melhores pratos do dia; e se o folhado de lavagante era pré-congelado; e se as doses podiam ser todas para partilhar por dois; e se Portugal ia ganhar o Mundial; e se Deus ia descer à Terra. A tudo, o desgraçado respondeu com brio, competência, simpatia. Até que o insólito aconteceu. Quando ia voltar a servir o vinho, tarefa a que se dedicara a um ritmo perfeito, aconteceu um fenómeno raro. No fundo do copo, viam-se umas lâminas granulosas, o tipo de corpo estranho que faria um cliente leigo contestar a bebida e, eventualmente, a factura. Constrangido, o empregado procurou uma justificação rápida: “Peço desculpa, parece que o vinho tem açúcar residual.” Ora, vinho com açúcar residual pode ser defeito. Mas sucede que o rapaz, por uma vez, estava enganado. O que se via no fundo do copo era, sim, ácido cristalizado ou cristais de tartarato. Uma coisa boa, frequentemente confundida com uma coisa má. Os cristais de tartarato, em vinhos brancos jovens, significam apenas que o vinho está isento de emulsionantes e conservantes químicos. E, de facto, o Quinta dos Termos Reserva Branco, de 2021, soube muito bem, fresco e harmonioso como a Serra da Estrela, região onde nasce. O rapaz aceitou a justificação, aliviado, e eu dediquei-me novamente ao folhado de lavagante – sem sinal de cristais, só uma mousse cremosa escondida pelas folhas de massa amanteig
Antes da visita, uma irritação. No site do restaurante, onde se faz a reserva, a primeira frase dizia: “O Primeiro Restaurante Dim Sum Artesanal De Lisboa”. Assim, com maiúsculas e tudo. No perfil da página de Instagram aumentava-se o disparate — e em inglês, que é para turistas e amigos expats compreenderem: “Lisbon's first Dim Sum Restaurant”. Ora, isto ou é patetice ou é publicidade enganosa. Restaurantes com dim sum (petiscos chineses) — dos bons, dos bem artesanais — existem por cá há décadas. Muito antes de hipsters de todo o mundo descobrirem os encantos de abrirem restaurantes na capital de um país europeu semi-desenvolvido, já havia pelo menos meia-dúzia de grandes casas a servir belíssimos petiscos chineses e dumplings caseiros. O que ainda não havia em Lisboa, antes do Aura Dim Sum Lab, era outra coisa. O que não havia era um restaurante com um balcão encantador e dumplings inspirados no Sudeste Asiático – tudo envolto num desses enredos modernos que começam nas redes sociais e no e-commerce e acabam em investidores internacionais. É isso que é o Aura Dim Sum. A narrativa, depois, acrescenta o seguinte. À frente do restaurante está um casal hispano-brasileiro. Catarina Goya aprendeu o ofício em Londres, tendo tido depois aulas em Singapura. Conheceu o marido e parceiro de negócio, Jose Luiz Suarez, na ilha de Lanzarote, onde cresceu. Ambos acabariam por estrear-se nos dim sum com um bar de praia, já no Brasil, mas a experiência seria efémera. Em Portugal, de in
Era sábado de sol, hora de ponta para o almoço, e a Portugália de Belém atraía mais gente do que o Padrão dos Descobrimentos, ali mesmo em frente. Havia lista para dar o nome à entrada e uma fila com 30 minutos de espera. Apesar do turismo, a clientela nacional enchia grande parte da casa e parecia atenta à actualidade. “Ele veio cá esta semana. Será que está cá hoje?”, comentava um homem para a mulher. “Ele”, já se vê, era Marcelo Rebelo de Sousa. As notícias indicavam que teria ali estado há três dias. A razão principal da visita, de acordo com o Expresso, fora a auscultação ao povo sobre o seu dislate acerca das vítimas de pedofilia na Igreja. Nesse dia, o chefe de Estado teria acabado as reuniões com os partidos, no Palácio de Belém, e depois fora jantar à Portugália para avaliar como andava a sua popularidade. O jantar terá corrido bem (“Ansioso por testar o povo (...), consta que Marcelo dormiu mais tranquilo”, lia-se no artigo). Mas nada fora dito sobre a refeição propriamente dita. Já sentado à mesa, tentei inquirir os empregados sobre o assunto – sem sucesso. É difícil conseguirem-se dez segundos, que seja, da sua atenção. Aceleram entre as mesas, atarantados e fechados nas suas olheiras. Só quando chegou a altura do pedido, meti uma bucha: “Queria o mesmo que o Presidente da República costuma comer, por favor.” O homem – só vi empregados-homens – ficou surpreendido, mas teve presença de espírito. “Um bife da vazia e meia imperial. É isso?”, perguntou, galhofeiro, a
O Go Juu começou como um clube de sushi para saudosos de Takashi Yoshitake e do seu Aya, restaurante de que é orgulhoso herdeiro no menu e na escola. Mas, em dias fracos, deixavam os ignaros que não haviam sido tocados pelos niguiris do mestre lá ir respigar o chutoro, eventualmente num lugar ao balcão à terça-feira, afortunadamente numa desistência ao fim-de-semana. Fui lá algumas vezes, mesmo não sendo membro do clube – e ainda que tenha comido no Aya (ah, injustiça!). À frente do balcão estava – e está – o chef Fagner Buzinhani, com quem conversava sobre a época do ouriço e a maturação do atum. Fagner era de uma sabedoria serena, ao contrário de certos sócios, pseudo-especialistas em fine dining e em baboseiras de gourmet novo-rico que fariam Yoshitake bolsar. À parte a parvoíce do pseudo-clube, tudo o resto era maravilhoso no Go Juu. Comi lá sempre bem, sempre peixe fresquíssimo, sushi clássico sem atalhos, peixe pescado com anzol por mãos de bordadeira. De topo, igualmente, a cozinha de quentes, tradicional e diversificada. Lisboa não terá melhor, ainda hoje, se descontarmos sítios com preços acima de 60 euros por cabeça. Mas, pronto, havia o clube e isso aborrecia-me. Havia o clube e por causa disso não ia lá há algum tempo. Até que bateu de novo aquele desejo por peixe cru. Comecei a sonhar com fatias de dourada, rosáceas de pregado e arroz glutinoso. Era preciso fazer alguma coisa. A questão colocou-se: voltar ou não voltar? Voltar. De resto, o suposto clubismo estari
Como se monta um restaurante de chef num saquinho de take away sem obrigar o cliente a ir para o fogão? Não monta. Para já, não monta.À segunda clausura forçada da restauração portuguesa, parece evidente que comida de chef, comida com tempos de cozedura precisos, comida de sabor e de estética, não cai na mesa das nossas casas directamente das mãos do estafeta. Comida de chef exige trabalhos, mesmo que mínimos.No caso do Izcalli, há pratos em que é preciso cozinhar ou montar quatro ou cinco elementos. Uma encomenda para uma família grande, com entrada, dois principais e sobremesa, pode chegar aos 15 ingredientes, às 15 caixinhas e saquinhos de vácuo e frasquinhos. Aos 15 procedimentos.Facilita, por isso, que à frente de um take away destes esteja uma cabeça habituada ao cálculo e à logística. E é isso mesmo que acontece com Ivo Tavares. Ivo Tavares quase foi informático, quase tirou matemática aplicada, quase foi chef Michelin, mas acabou a montar um balcão para seis pessoas de alta comida mexicana em Alcântara, com a extraordinária Paola Arango, uma ideia que parecia uma impossibilidade financeira e uma experiência fugaz mas se tornou numa referência gastronómica incontornável de Lisboa com três anos de vida.É a cabeça meticulosa de Ivo que nos salva do pânico quando vemos a encomenda que ele próprio nos vem entregar a casa. A encomenda não parece um take away, parece um armazém da DHL. Basta olhar para a carga para percebermos que vai ser preciso montar uma mise en place amp
Se o jantar inclui pithivier, sei quem vou desafiar.“Viva, hoje temos pithivier. Quer vir cá jantar a casa?”Habituado à austeridade da culinária duriense, o sogro contrapôs, do outro lado da linha, desconfiado e ríspido. "Pithivier? O que é pithivier?"Procurei simplificar, recorrendo à semântica transmontana. “É uma empada grávida de gémeos que gosta muito de manteiga. Está a ver o chausson de maçã? Imagine um chausson, mas em vez da maçã tem faisão trufado lá dentro.”“Chausson! A que horas?”Às 18.15 tocou à porta Daniel Silva. Daniel Silva é o homem da sala do Essencial. Estudioso de vinhos de Portugal e do mundo, entusiasta da identidade e do terroir, costumava pairar delicadamente de mesa em mesa, sem se impor mas disponível para falar se o quiséssemos ouvir.Nesta circunstância, Daniel limitou-se a entregar o saco de papel kraft com o Menu 4 pratos (duas entradas + um prato principal + uma sobremesa = 50€ + 5€ de entrega).Remeteu explicações sobre finalizações para um cartãozinho e retirou-se com covidesco bom senso.Pus logo a mesa de acordo com os tempos, cada um sentado numa ponta, como fariam os aristocratas franceses do século XVII da comuna de Pithiviers, na cidade de Orléans, quando jantavam com suas donzelas. Abri as janelas contra o bicho mau e tratei de torrar pão. O sogro adora pão e presumi que iria precisar dele. O menu daria para um estômago e meio, ou seja, daria para o sogro.Quando ele chegou, eu estava a estudar o cartãozinho e a dispor as caixinhas. Duas e
A moda do take-away tem mais coisas más do que boas. Mas há uma que é notável. É que, nalguns casos, ajuda-nos a perceber como funcionam as cozinhas de chef. Com o take-away, mesmo longe das cozinhas profissionais, podemos ficar a saber como se faz o nosso prato preferido do restaurante.Explico. Aqui há umas semanas, escrevi sobre um arroz de bivalves que comi no ZunZum, da chef Marlene Vieira. Foi nesses idos meses de 2020 em que podíamos jantar numa mesa que não a da nossa sala. Na altura, parti a cabeça por causa do prato. Qual seria o segredo? Como se fazia aquilo? Como se conseguia aquela textura sedosa?As respostas entraram-me pela casa há dias. Num saquinho de papel com o logotipo da chef Marlene Vieira, vinha uma série de produtos embalados a vácuo – nada mais nada menos do que os ingredientes do arroz do ZunZum.Ao consultar o menu do take-away, no site do restaurante, ao lado da carta de pratos prontos a comer, vi uma série de propostas para finalizar em casa. Entre elas estava a do arroz de berbigão à Bulhão Pato, com tataki de espadarte rosa. Embora renomeado, adivinhava que a essência seria a mesma do tal arroz que me deslumbraram umas semanas antes.Enquanto o resto da família atacava as entradas do repasto — pataniscas, empada (manteigosa) do cozido, asinhas de frango fritas —, dei por mim a ler as instruções de confecção como se fosse a sebenta do exame de Matemática do 12º ano. Felizmente, não havia números. Era só “deite isto, depois aquilo, por fim aqueloutro
As massas italianas têm um ponto de cozedura preciso, são seres sensíveis e delicados. Fechá-las dentro de uma mala térmica às costas de um indivíduo que se julga o Miguel Oliveira das PCX é como pôr um prato de sopa no programa de secagem extra da máquina de secar. As hipóteses de chegar tudo esbardalhado são imensas e incontornáveis.Em todo o caso, é bom podermos comer pasta fresca no lar. Mesmo que não fique al dente, no ponto perfeito, há um momento em que o corpo pede hidratos de carbono e pecorino e molho de tomate – e nós devemos agradecer a quem arrisca levar a casa o que nós pedimos, mesmo se o que nós pedimos é um absurdo culinário.Há, aliás, vários absurdos culinários do take away que são muito populares. Talvez o exemplo mais notório disso seja também de origem italiana: a pizza. A pizza, por definição uma rodela de pão assado coberta com queijo e coisas, quando fechada em cartão, fica suada e mole como uma fita de cabeça depois de uma partida de squash. Pior do que massa de pizza cozida, suada e mole, só queijo de pizza cozido, suado e mole.E ainda assim as pessoas pedem muitas pizzas ao domicílio. E ainda assim as pessoas pedem muitas massas ao domicílio. Porque as pessoas são absurdas e as pessoas têm fome. E os restaurantes respeitam isso. Uma salva de palmas.Neste Tratto by La Trattoria, braço da comida para fora do La Trattoria, ancião restaurante italiano da Rua da Artilharia, activado para take away em Junho do Ano 1 d.P. (depois da Pandemia), os pratos di
Quando Lisboa ainda não tinha restaurantes com mobiliário nórdico e bancos Chesterfield, houve uma tendência de fazer restaurantes com telheiros interiores. O telheiro interior era uma forma de dar um ambiente de casinha rural a um restaurante encarcerado num prédio urbano de Lisboa e não só.Sou fã de restaurantes com telheiros interiores e colecciono-os. Os telheiros interiores, com as suas telhas a bordejarem a cozinha e a entrarem pela sala, costumam ser um cliché kitsch e um veículo de alentejanice. Entra-se num restaurante com telheiro em Campo de Ourique e, de repente, está-se num tasco de casario em banda algures no interior do distrito de Beja.No caso de A Trempe, estamos perante um duplo telheiro: um exterior, cravado na fachada do prédio, e um interior. Duplamente kitsch, duplamente rural. Viva o telheiro.Já cá tinha feito três refeições no passado. A sensação, à entrada, foi a mesma. Eis uma casinha fofa, uma cozinha de bem-comer familiar, que resiste ao modernismo culinário do bairro e das suas gentes. Decoração de tijoleira e as famosas trempes, nome dado aos aros com três pernas sobre as lareiras, onde assentam (assentavam) as panelas de ferro.Na mesa, foram logo postos petiscos (sem terem sido pedidos). Salsichão de porco preto cortado finamente; torresmos do rissol fritos no dia, chamucinhas de carne sem picante (e sem história); pão tipo alentejano fatiado; e uma saladinha mista. A carta nem apareceu, que os pratos do dia expostos eram apetitosos e bastavam,
Estava ainda a maldizer o pão com excesso de fermento industrial e esfarelado, porventura conservado no frio, quando cai na mesa o melhor rissol de camarão de que me lembro. Tudo perfeito: massa da grossa bem frita, o recheio um creme sedoso e piscícola a lembrar os rissóis de peixe de antigamente, lá pelo meio troços rijos do marisco, tudo quente a deitar fumo. Se tivesse que eleger comida de conforto, os fritos estariam no topo das preferências, sobretudo os pastéis. Estão fora de moda, ninguém os vai ver na boca de um influencer, mas são miminhos de avozinha de escumadeira na mão, são manta no colo e mesa com flores estampadas na toalha, são cozinha com braseiro e relógio de cuco. “Oh lá, lá”, atirou às tantas o meu amigo, já abalançado para os pastéis de massa tenra, acabados de pousar: folhados, pouco canónicos na substância de carne picada atomatada – muito bons, também. A cabidela veio confirmar o talento do sítio, projecto de Frederico Pombares e Tito Serradas Duarte, proprietário do Mariscador, restaurante que residiu neste mesmo avançado do Campo Pequeno (como ainda atestam os talheres). Os bagos de arroz gordos e gostosos, o molho aveludado e gomoso ao jeito do risoto, tudo no ponto, da cozedura ao vinagre, da doçura ao sal. A fasquia baixou com o entrecosto. Falhar um entrecosto é difícil. Basta tempo a cozinhar e temos comida boa. Este, longe de estar falhado, não era brilhante, expectativa legítima num restaurante que promete o melhor da gastronomia portuguesa.
Andava há muito para fazer esta prova: mostrar aos meus filhos adolescentes que o salmão que eles comem enrolado em arroz com queijo creme nos buffets chineses da cidade não é sushi. Fiz-lhes muitas vezes a conversa. Sushi é algo delicado, complexo, elegante. É preciso saber do melhor peixe, da época dele, do corte perfeito, da temperatura. É preciso saber do arroz. A tudo isso eles respondiam com a arma do costume: “Pai, és um snob preconceituoso. Devias provar os rolinhos com maionese do Yokohama.” Eis então o momento da verdade. Antes de fazer o pedido, fui ao balcão olhar os peixes. Tudo com excelente aspecto. Lombos brilhantes e gordos. Na ponta, um enorme pedaço de chu-toro de atum rabilho, ligeiramente marmoreado. “Este é que os vai convencer.” O processo foi gradual. Primeiro, veio o hamachi de lírio. Os miúdos rejubilaram logo com as lâminas marinadas em molho ponzu, yuzu e óleo de trufa – clássico guloso que o chef Habner Gomes trouxe do Hikidashi, restaurante de Campo de Ourique onde esteve antes de aqui residir. Depois, subiu-se de nível para um sashimi clássico: atum, dourada, pregado e salmão. Peixes fresquíssimos, cortados na perfeição. “O pregado é muito bom”, disse a mais velha. “Este salmão não tem nada a ver”, deliciou-se o mais novo. Por fim, a pièce de résistance, a mais notável proteína crua que um humano pode levar à boca. A maior bomba de umami inventada pelos japoneses. Se os garotos ficassem indiferentes aos niguiri de chu-toro teria de os deserdar.
Faria sentido que Lisboa tivesse uns quantos bons restaurantes de cozinha macaense. A cozinha macaense será, com a de Goa, uma das mais originais fusões culinárias onde os portugueses participaram. Sucede que restaurantes goeses em Lisboa há uma boa meia dúzia, macaenses nem por isso. Nem em Portugal, nem em Macau. Os chineses de Macau borrifam-se para a herança lusa e os portugueses de Macau ficam encostados a ver a história passar. Há ainda algum folclore imposto por meia dúzia de regras definidas na transição do território para a alçada da China, como as fardas da PSP e os nomes das ruas em português, mas a comidinha é toda chinesa, com excepção do extraordinário Riquexó, a tasquinha da dona Aida Jesus, anciã com 104 anos. Mariana Valle Lima Em boa hora, por isso, nasceu uma tasca macaense na fronteira entre os Anjos e a Penha de França. (Sim, outra vez a Penha de França. Viva a Penha de França. A Penha de França é, porventura, o bairro que melhores surpresas me tem dado nos últimos meses. Uma tasca macaense na Penha de França é uma coisa bela.) À frente dos fogões está “o Xico”, contou quem serviu à mesa. Xico é filho de mãe macaense e tem avó chinesa. A fiscalização familiar do receituário é apertada. “Muitas vezes vai às compras e telefona à mãe e às tias para esclarecer dúvidas”, detalhou. Xico tem o prazer das suas origens (Patuá é uma referência ao crioulo macaense) e tem mais, porque domina outros territórios e é livre. Tanto toca a música da sopa tom yum tailande
A Lena D'Água tinha acabado de tocar no Maria Matos e eu chorei como uma criança a quem caiu o gelado no chão. Pode ter sido da emoção de voltar a uma comunhão artística, depois do início da pandemia. Pode ter sido daquela mulher ali, regressada dos confins da desolação, erguida por uma banda de jovens frescos e felizes. Pode ter sido de “A Culpa é da Vontade”, do Variações, ter tido a melhor interpretação de sempre. Chorei. Chorei muito. Chorei feliz. Chorei tanto que, no fim, só me apetecia beber uma cerveja. Duas, três. Era assim que fazíamos antigamente. Íamos a um concerto e depois bebíamos umas cervejas. E agora eu precisava de repetir o ritual, mas não havia nada aberto. De repente, já a chegar ao lugar do carro, eis uma porta aberta, eis duas mesinhas em frente a uma loja, eis duas pessoas a beber uma cerveja. Não era bem um café, não era bem um restaurante. Era uma lojinha mínima sem fogão, com uma mesa lá dentro e duas cá fora. E bebida. E comida. “Estamos mesmo a fechar, mas se quiserem beber alguma coisa ou comer ainda dá”, disse Vítor Mortara, responsável do Café Mortara juntamente com Letícia Mendes, sua companheira. Ou comer! Comer o quê? Os concertos não dão só sede, também dão fome. “Temos massas frescas”, esclareceu Mortara, um brasileiro de São Paulo com ascendência italiana e bigodinho hipster. Massas frescas e cervejas artesanais num cafezinho do Bairro das Estacas, nas traseiras da Avenida de Roma. Depois de um concerto. Maravilha. Gabriell Vieira Ness
A porta da rua está fechada. Nenhuma tabuleta, nada que indique um hotel ou um restaurante ou uma galeria de arte – tudo o que o The Art Gate anuncia ser. Recorro ao Google e certifico-me então da morada completa. É mesmo aqui. Toco à campainha e subimos ao 1º esquerdo. Mandam-nos aguardar numa sala/recepção, acompanhados por um quadro de José Pedro Croft. O meu amigo, conhecedor do mercado da arte, atira: “Custa mais do que a minha casa.” A espera tem a ver com “a preparação do primeiro momento”, na galeria ao lado, e faz-se com outros comensais, também com reserva para a mesma hora. Há um certo desconforto nessa pausa, mas eis que chega um dos cozinheiros para nos guiar. O périplo pelo menu de degustação de 17 pratos – única modalidade disponível (90€) – inicia-se pela galeria. Explica-se o conceito, explica-se o que se vai comer, explica-se como devemos proceder. Explica-se muito. Os primeiros quatro aperitivos são tomados de pé em modo de cocktail volante, tudo bom, destaque para uma espuma de chá com pó de hibiscos e sumo de frutos vermelhos. Passamos depois pela sala de comer, apenas com uma mesa comunitária, mas que mesa: uma roda de madeira pesada e larga da autoria do romeno Mircea Anghel. Em redor cabem meia-dúzia de pessoas com distância Covid e cabe mais arte e design: por cima candeeiro Tom Dixon, nas paredes fotografias de Daniel Blaufuks. Eu e o meu amigo seguimos para a chef’s table, na própria cozinha, um balcão onde vemos os fogões e a mise en place. Estamos
Tenho comido algumas massas com anchovas, mas nenhuma se comparou à deste A’paranza. A pasta é dura, bem mais do que o al dente tuga, dura mesmo, dura de Nápoles, região de origem dos donos. E o molho de anchovas e tomate cereja tem o balanço perfeito de gordura e doce, tudo envolvido já na mesa em burrata, uma decadência cremosa e escorregadia como o soalho do ClubJenna, uma das melhores coisas que podemos comer nesta cidade por 12 euros. Fosse só isto e era muito bom, mas houve mais coisas notáveis. No A’paranza estamos na Itália do Sul e do mar, com pescado das lotas de Sesimbra e Peniche. Uma Itália que tem petinga e lulas fritas embrulhadas em papel. E tem pacheri, massa antiga de sêmola de trigo duro, como um macarrão grande, aqui com espadarte, tomate cereja e beringela. E tem fettuce com ovas de tainha secas (petisco raro em Portugal, mas célebre no Sul da Itália, onde são conhecidas como bottarga). Numa das visitas, andámos pelos anti-pasti e quase ficámos por aí, tantas eram as atracções. Mexilhões abertos em limão e pimenta, cozinhados no ponto, tenros e suculentos. Polipetti affogati, polvinhos guisados, mesmo inhos, profundos no molho escuro de tomatada e vinho. Outra coisa boa é que este italiano é franco e permite partilhar – longe dessas reminiscências dos anos 90, casas forradas a marcas importadas DOP disto e daquilo, com hidratos de carbono ao preço de carabineiros. Éramos cinco, pedimos quatro entradas e três pastas, sugestão da casa. No início, achei curt