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Quatro Filhas

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Four Daughters
Photograph: Cannes International Film Festival
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A Time Out diz

3/5 estrelas

Um filme híbrido sobre uma mãe, as suas filhas e os efeitos trágicos do jihadismo sobre elas, é candidato ao Óscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem.

Em meados da década passada, os media deram bastante atenção à história de uma mulher tunisina chamada Olfa Hamrouni. Divorciada de um marido que não a tratava bem, Olfa viu duas das suas quatro filhas, as mais velhas, desaparecerem de casa e deixarem o país após terem sido radicalizadas, e juntarem-se às forças do Estado Islâmico (EI). Uma delas casou-se com um dirigente desta organização, depois morto em combate, e teve uma filha dele. As duas raparigas acabaram por ser presas pelos militares da Líbia que lutavam contra o EI e estão presas neste país, juntamente com a criança. Olfa e as outras duas filhas esperam que elas possam um dia ser extraditadas para a Tunísia.

A cineasta tunisina Kaouther Ben-Hania queria rodar um documentário sobre Olfa Hamrouni e as suas filhas, mas furtando-se às convenções e rotinas do formato, bem como àquilo que considerava ser o “condicionamento” da mulher pelos jornalistas com quem tinha já contactado e a quem tinha dado entrevistas. O seu filme Quatro Filhas é, por isso, um arriscado híbrido de realidade, ficção e reconstituição dramatizada, em que Olfa participa, assim como uma actriz que a interpreta. As suas duas filhas mais novas também aparecem, e as duas mais velhas que estão presas na Líbia são também, pelo seu lado, personificadas por duas actrizes muito parecidas com elas.

Temos assim que além do elemento documental propriamente dito, Quatro Filhas (candidato ao Óscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem) mostra também as três actrizes a prepararem-se para os seus respectivos papéis, e as reacções das interpretadas perante elas e a parecença com a mãe e as irmãs; Olfa e as filhas mais novas a intervirem com sugestões durante a filmagem das sequências de reconstituição, dizendo o que está a ser bem ou mal feito; momentos de convívio entre todas elas e até com a realizadora; e a rodagem de cenas recriadas envolvendo quem as viveu e os actores (numa delas, o intérprete do amante que Olfa teve após se separar do marido vai-se abaixo ao contracenar com uma das filhas desta, que aquele molestava, mostrando-se muito incomodado com a intimidade da cena, ao contrário da rapariga, que não se revela afectada e até reage com compreensão).

Se esta abordagem “meta” parece ter um curioso efeito, que poderíamos chamar terapêutico, em mãe e filhas, nem sempre resulta bem para o espectador. Há alturas em que nos sentimos algo baralhados, e em que nos interrogamos se o formato narrativo heterogéneo escolhido por Kaouther Ben-Hania não terá cobrado algum tributo emocional mais pesado sobre Olfa e as duas filhas que não a deixaram, Eya e Tayssir. Por outro lado, estas, tal como a mãe, revelam-se muito articuladas, sensíveis, expressivas e empáticas, falando abertamente e, por vezes, com muita graça e bastante desassombro, sobre a sua vida familiar e íntima, a relação entre as irmãs (todas muito bonitas e gaiatas) e com Olfa, e a condição das mulheres de duas gerações, com alguns valores partilhados mas aspirações e ideias diversas, num país como a Tunísia, que era aceitavelmente laico até à eclosão da chamada Primavera Árabe.

Embora Quatro Filhas não explique bem de que forma, quando e por quem é que as duas raparigas mais velhas foram radicalizadas e decidiram juntar-se ao EI, o filme deixa bem claro o efeito catastrófico da Primavera Árabe nos países em que se deu. Ou abrindo as portas a uma maior, mais aberta e mais intensa actividade dos movimentos radicais islâmicos, no campo da política e junto das populações, e em especial dos mais jovens, como aconteceu na Tunísia, e de que as duas filhas mais velhas de Olfa acabaram por ser vítimas; ou derrubando governos estáveis e espalhando o caos social e trazendo a guerra civil, como se viu na Líbia.

Sem os acontecimentos da Primavera Árabe e o consequente disparar da influência jihadista, é bem possível que Olfa não tivesse visto serem-lhe arrancadas as duas filhas mais velhas, que se teriam ficado por um interesse passageiro pelas subculturas gótica ou punk, e pela sua componente de revolta. E não estariam hoje fechadas, com uma menina pequena, num cárcere líbio, e a mãe e as irmãs sem fazerem ideia de quando as voltarão a ver, e de quando poderão conhecer a neta e sobrinha. Com o seu formato excêntrico e complicado, e os seus defeitos e lacunas, Quatro Filhas acaba por conseguir contar a história trágica de uma mãe e do seu quarteto de filhas, separadas pelos ventos mais implacáveis da história deste século.

Escrito por
Eurico de Barros

Elenco e equipa

  • Realização:Kaouther Ben Hania
  • Argumento:Kaouther Ben Hania
  • Elenco:
    • Majd Mastoura
    • Hind Sabri
    • Kal Naga
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