Com a Alma na Mão, Caminha
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Crítica

Com a Alma na Mão, Caminha

4/5 estrelas
A fotojornalista palestiniana Fatma Hassouna ficou em Gaza para documentar a invasão – até morrer. A realizadora iraniana Sepideh Farsi preservou a sua história
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A Time Out diz

Fatma Hassouna era uma fotojornalista palestiniana de 25 anos que, depois da invasão israelita, ficou em Gaza a documentar, com as suas imagens, os bombardeamentos, a gradual destruição da cidade, a dor da população e também a sua capacidade de resistência e de manter um semblante de vida quotidiana no meio da devastação, da falta de comida e água e do luto pelos familiares e amigos mortos. A realizadora iraniana Sepideh Farsi, refugiada no Ocidente desde os anos 80, conheceu-a através de um amigo comum, e fez dela a protagonista do seu documentário Com a Alma na Mão, Caminha, uma frase que Hassouna lhe disse durante uma das suas muitas conversas telefónicas.

Fatma e Sepideh nunca estiveram juntas. O filme é composto a 90 por cento das suas conversas, pontuadas aqui e ali com imagens dos canais televisivos de notícias sobre a situação em Gaza, e também por fotografias tiradas por Fatma, que foi filmada pela realizadora no seu telemóvel durante as videochamadas que fizeram, ao longo de mais de 200 dias, e nas quais aquela lê também alguns dos poemas que escreveu, e canta. Ocasionalmente, aparecem alguns membros da sua família, caso dos irmãos, ou vizinhos. Fatma corre perigo todos os dias e conta o que é estar debaixo de fogo constantemente, viver em condições precárias, com o abastecimento de água e luz racionado, e a Internet a ir e vir, estar praticamente sem comida durante vários dias e perder familiares, amigos e vizinhos nos bombardeamentos. Que por vezes acontecem durante as conversas com Sepideh, e cujos efeitos que ela mostra com o seu telemóvel.

Logo desde a primeira conversa, Sepideh ficou impressionada com aquela talentosa e cordial jovem que estava a viver o inferno na terra, mas nunca perdia o seu sorriso contagiante nem o entusiasmo. E, estoicamente, minimizava a situação extrema que estava a viver com os seus, mantendo uma réstia de esperança numa possível melhoria da situação. E não tinha uma palavra de ódio ou de execração para aqueles os bombardeavam, espalhando a destruição e a morte, sendo também crítica do Hamas e dos seus dirigentes, dizendo que grande parte dos palestinianos já não acredita neles.

O mundo de Fatma é Gaza, de onde nunca saiu na vida, e ela conta a Sepideh que um dos seus sonhos era viajar e ir a cidades como Roma, bem como ter acesso a cursos onde pudesse aperfeiçoar e aprofundar os seus interesses artísticos. A realizadora, por sua vez, fala-lhe de todos os países por onde anda a mostrar os seus filmes em festivais, embora não possa regressar ao Irão, nem sabendo se alguma vez o fará e se irá morrer longe da sua pátria. Fatma está presa onde nasceu. Sepideh pode andar por toda a parte, mas não pode voltar a casa. Perto do final de Com a Alma na Mão, Caminha, as comunicações com Gaza estão cada vez mais difíceis, Sepideh encontra-se cada vez mais preocupada com a situação da sua amiga, e Fatma, que sofre de problemas de nutrição, mostra-se muito fatigada e desesperançada. A realizadora comunica-lhe então que o documentário foi seleccionado para ser apresentado no Festival de Cannes, onde será antestreado mundialmente na secção paralela ACID, reservada a filmes independentes. E que está a tentar obter um visto do governo francês para que Fatma consiga sair de Gaza e venha a Cannes acompanhar a sua projecção, podendo finalmente conhecer-se em pessoa.

No passado dia 16 de Abril, Sepideh Farsi teve a notícia de que Fatma Hassouna morreu durante o sono, juntamente com dez membros da sua família, incluindo uma irmã grávida, quando dois mísseis lançados por um drone israelita destruíram o seu prédio, e o apartamento do segundo andar em que se encontravam. Apenas a mãe da jovem sobreviveu. “Ainda não acredito que isto sucedeu”, declarou Farsi ao Guardian na mesma entrevista. “Para mim, ela está algures aí e acredito que a encontrarei um dia”. A certa altura de Com a Alma na Mão, Caminha, Fatma diz a Sepideh que, quando todo aquele horror acabar e se puder casar e tiver filhos, irá mostrar-lhes o que documentou nas suas fotografias e assim transmitir-lhes a sua história, as suas experiências na Gaza martirizada e o que ali viveu. Tudo isso, e a memória de Fatma, encontra-se agora preservado neste documentário.

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