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Ennio, o Maestro

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Ennio, o Maestro
DREnnio, o Maestro
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A Time Out diz

4/5 estrelas

Giuseppe Tornatore conta, sem dar fífias, a história da vida e da carreira de Ennio Morricone. Um documentário muito completo a merecer aplausos.

Na primeira vez que Pier Paolo Pasolini e Ennio Morricone colaboraram, o realizador informou o compositor que ia utilizar Bach em toda a banda sonora do filme. “Então não estou aqui a fazer nada!”, disparou-lhe Morricone, e foi-se embora. Pasolini abdicou de Bach e deu carta branca a Morricone para compor a banda sonora como quisesse. Esta é apenas uma das muitas histórias contadas pelos muitos entrevistados do longuíssimo documentário de Giuseppe Tornatore sobre o seu muito prolífico compatriota, Ennio, o Maestro, que impressiona não só pela duração (duas horas e meia), como pela quantidade e qualidade de informação sobre o biografado (que também participa, numa grande entrevista que atravessa todo o filme, feita pouco tempo antes da sua morte, em 2020), pelos nomes da música e do cinema que aparecem a incensá-lo, pela variedade das imagens de arquivo usadas, e ainda da música composta por Morricone ao longo da sua abundantíssima carreira (só bandas sonoras, foram mais de 500).

Se há um reparo que podemos fazer a Ennio, o Maestro, é passar em branco as dezenas e dezenas de bandas sonoras “alimentares” e repetitivas que fez para outros tantos filmes menores, esquecidos ou muito maus, embora um dos seus colegas italianos refira de passagem que, a dado momento, Morricone andava a compor música para westerns spaghetti a mais, e que era toda igual. De resto, Tornatore praticamente não deixa nada por dizer, a começar na infância musical do compositor (o pai era trompetista e queria que o filho lhe seguisse as pisadas em vez de ser médico, como o pequeno Ennio desejava, e assim foi, até na escolha de instrumento), na sua rigorosa e exigente formação clássica e no interesse pela música experimental e de vanguarda, e na sua contribuição para a música ligeira italiana nas décadas de 50 e 60 com canções originais e arranjos surpreendentes); e a acabar no seu trabalho fora do cinema (ver, por exemplo, a peça sinfónica que escreveu para homenagear as vítimas dos ataques terroristas do 11 de Setembro).

A parte de leão de Ennio, o Maestro refere-se naturalmente aos filmes e à maneira como Ennio Morricone inovou na composição de bandas sonoras, trazendo para elas o seu profundo conhecimento de música erudita, experimental e ligeira, e utilizando instrumentos, objectos e sons pouco ortodoxos, e em geral alheios ao género. Morricone transformou assim a música para filmes, de habitualmente descritiva, sugestiva e ilustrativa, conferindo-lhe um valor estético em si e tornando-a numa componente da própria narração cinematográfica. O que Tornatore deixa abundantemente claro com excertos de alguns dos muitos westerns (em especial da modalidade spaghetti), filmes de terror, policiais, comédias, históricas e fitas de cunho sócio-político (como as de Elio Petri, de Giuliano Montaldo ou dos irmãos Taviani) cujas bandas sonoras o compositor assinou.

Morricone conta e comenta detalhadamente, aliás, como compôs muitas delas, em que circunstâncias, que referências clássicas lhes incluiu e que “brincadeiras” formais ou pequenos truques fez (o que pode resultar por vezes abstruso àqueles que não têm conhecimentos musicais). O próprio Tornatore junta-se, a certa altura, aos seus entrevistados para falar da experiência que teve com Ennio Morricone, em especial em Cinema Paraíso, mas de resto dá lugar à ilustre parada de convidados ultra-elogiosos do maestro, e que inclui, entre muitos outros, Clint Eastwood, Bernardo Bertolucci, Marco Bellocchio, Quentin Tarantino, Dario Argento, Joan Baez, Hans Zimmer, Quincy Jones (que lhe chamava “meu irmãozinho”), Pat Metheny, John Williams, Hans Zimmer, Bruce Springsteen, Milva, Zucchero ou Gianni Morandi.

A histórica e longa parceria entre Sergio Leone e Ennio Morricone (que foram colegas de escola) é particularmente detalhada, como não podia deixar de ser. E o filme mostra também como em Itália, e durante muito tempo, Morricone foi mal visto pelos seus professores do Conservatório, todos eles compositores, e por colegas ligados à música clássica, por se dedicar a algo tão cultural e artisticamente menor e indigno como a música de filmes, em vez de ter seguido uma carreira de “prestígio” no seio daquela. Isto atormentou o compositor durante grande parte da sua vida, em que a sua mulher, Maria Travia, “que não sabia absolutamente nada de música”, foi sempre a primeira ouvinte e crítica das suas composições.

E há ainda a saborosa história sobre como Ennio Morricone não compôs a banda sonora de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, por culpa de… Sergio Leone. Em 1971, o realizador de Spartacus contactou Leone, perguntando-lhe se Morricone estava livre. E Leone mentiu a Kubrick, dizendo-lhe que ele estava muito ocupado com o seu western Aguenta-te, Canalha!, o que não era verdade, porque a música do filme já tinha sido composta. Foi uma das oportunidades que Morricone lamentou ter falhado até ao fim dos seus dias (mas apesar do seu feitio torto, perdoou a Sergio Leone).

Escrito por
Eurico de Barros
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