Great Yarmouth: Provisional Figures
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Crítica

Great Yarmouth: Provisional Figures

4/5 estrelas

O olhar lugubremente intransigente de Marco Martins encontra o seu correlativo humano na persistência quase sobrenatural da interpretação de Beatriz Batarda.

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A Time Out diz

Tânia (Beatriz Batarda), a protagonista de Great Yarmouth – Provisional Figures, de Marco Martins, já trabalhou nas fábricas de processamento de aves da cidade costeira inglesa de Great Yarmouth, a matar, depenar e embalar galinhas e sobretudo perus. Agora, casada com um inglês, Richard (Kris Hitchen), subiu um pouco na vida, porque o seu trabalho é orientar os trabalhadores migrantes portugueses (os “provisional figures” do título) que chegam para trabalharem nas ditas fábricas, e alojá-los nos vários hotéis encardidos, decadentes e mal-cheirosos que ela administra na cidade.

Os portugueses chamam-lhe “Mãe”, porque Tânia, pelo menos à primeira vista, parece preocupar-se um pouco com eles, dar-lhes conselhos, animá-los, mesmo ir em socorro daqueles com estômagos mais fracos que não aguentam estar horas a cortar o pescoço a aves, a depená-las ou a mangueirar o sangue, as tripas e as fezes que largam. Só que, na verdade, Tânia está mesmo é centrada no seu futuro e a fazer por ele. Quer ir mais longe, deixar a instalação dos migrantes e a indústria das aves, e entrar no negócio do turismo para idosos, reformar de alto a baixo os hotéis onde os portugueses dormem aos três em cada quarto, pô-los bonitos, limpos e acolhedores para os hóspedes que chegam de autocarro, tê-los confortáveis e satisfeitos e dar-lhes aulas de “line dancing”, de que Tânia gosta tanto.

Para isso, precisa de poupar. O que é difícil quando se tem um marido que joga – e perde – nos galgos, ao ponto de já dever dinheiro a pessoas nada recomendáveis. Ninguém, nem o esquálido Raul (Romeu Runa), sem braço direito e que cria galgos em casa, sabe onde ela esconde o dinheiro que tem conseguido economizar, parte dele subtilizado ao marido sem que ele dê por isso. Tânia passa o tempo a tentar melhorar o seu inglês ouvindo no telefone lições para pessoas que querem singrar na indústria da hotelaria, e a repetir as mesmas frases vezes sem conta. E que, ironicamente, referem realidades de hospedagem nos antípodas daquelas que proporciona aos seus compatriotas (“linda vista para o mar”, “todas as conveniências de conforto”). Um dia, chega a Great Yarmouth Carlos (Nuno Lopes), que vem em busca do irmão, um homem que se meteu em graves sarilhos por causa de dívidas. E como Tânia teve parte naquilo que acabou por suceder àquele, a presença de Carlos vai perturbar-lhe o dia-a-dia. Tanto mais que acaba por se envolver com ele.

Em Great Yarmouth – Provisional Figures (que desenvolveu a partir de um espectáculo da companhia Arena Ensemble, fundada com Beatriz Batarda), Marco Martins pormenoriza e adensa, visualmente e no plano narrativo, o realismo social soturno e rude de São Jorge (2017), para contar uma história de uma desesperança inescapável, passada quase sempre de noite, na escuridão do Inverno inglês, e na penumbra da alma de Tânia. Great Yarmouth – Provisional Figures é um ofício de trevas, cinematográfico, social e moral, um filme onde o sol raramente brilha, o optimismo não tem espaço para se manifestar (quanto mais Tânia ouve as lições de inglês hoteleiro, repete as mesmas frases, e o que vai fazer quando for empresária de turismo da terceira idade, mais percebemos que nada lhe vai correr bem), as pessoas pensam primeiro, e acima de tudo, nelas mesmas.

O olhar lugubremente intransigente da câmara de Marco Martins em Great Yarmouth – Provisional Figures (a fotografia é de João Ribeiro) encontra o seu correlativo humano em Tânia, uma mulher tenaz ao ponto de ser implacável, que Beatriz Batarda interpreta com uma impressionante máscara de cansaço crónico, tristeza entranhada e persistência quase sobrenatural. Como alguém a quem a vida sugou prematuramente a beleza, a felicidade e a compaixão, mas que mesmo assim conserva ainda a sombra de uma réstia de decência. E que este filme desconsolado, agreste e glacial não julga nem justifica, deixando-nos a dificuldade de o fazer.

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