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Milagre

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‘Milagre’, de Bogdan George Apetri
DR
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A Time Out diz

4/5 estrelas

O filme do romeno Bogdan George Apetri começa com um crime e desemboca no sobrenatural.

A julgar pelo cinema que vem de lá, a Roménia, tal como Portugal, é um daqueles países em que as pessoas nunca estão contentes com o que têm e passam o tempo a queixar-se de tudo e mais alguma coisa, da mais banal à mais abstracta. Milagre, de Bogdan George Apetri, não foge a esta regra. Um médico queixa-se de um taxista amigo não desligar o contador do carro e dar-lhe uma viagem de borla; o taxista queixa-se de já não poder fazer coisas dessas porque há regulamentos e pode ser multado e perder a licença; outro médico queixa-se que o mundo enlouqueceu; um polícia queixa-se a um inspector que a sua profissão o faz ver coisas cada vez mais horríveis e incompreensíveis, e que as pessoas parecem ter-se transformado em selvagens.

No centro de Milagre, cuja história se divide em dois actos, está uma dessas acções de selvajaria aleatória. Cristina (Ioana Bugarin), noviça num convento, vai a uma consulta na cidade, no táxi do irmão de outra freira. Uma vez no hospital, percebemos que a consulta a que ela foi introduz um novo dado dramático na história. À volta, Cristina perde a hora que tinha combinado com o taxista amigo para se encontrarem e ele a reconduzir ao convento, e apanha um outro carro de praça. A meio do caminho, o taxista espanca-a e viola-a, numa sequência em que Apetri desvia a câmara, dá ao som a tarefa de sugerir a brutalidade e o horror do que está a acontecer, e fá-la descrever, lentamente, um círculo completo, até regressar ao local do crime a tempo de ver o violador afastar-se a limpar os óculos.

No segundo acto de Milagre, entra em cena o inspector Marius (Emanuel Pârvu), que investiga o caso. Afinal, Cristina não morreu, nem o bebé que traz no ventre, e está no hospital, presa por um fio. O polícia está muito perturbado e indignado com o que aconteceu à rapariga. É brusco com as pessoas que interroga, vai ao hospital várias vezes para tentar a todo o custo que ela, que mal consegue mexer-se ou falar, identifique o agressor nas fotografias que lhe mostra, e não hesita em recorrer à mentira, à ameaça e à violência para levar o suspeito a confessar. E é na ressaca dessa descontrolada fúria justiceira que o realizador, depois de nos ter levado ao limite da tensão, introduz uma nota de fantástico que justifica o título do filme e faz o enredo dar uma enorme pirueta, com um segundo e último plano circular.

Segundo título de uma trilogia (o primeiro, Unidentified, nunca se estreou cá e também versa uma investigação policial), Milagre junta ao seu enredo de pavio longo e à placidez estilística, a capacidade de deixar nas entrelinhas dos diálogos coloquiais, na sugestão, no não-dito (ou, no caso da cena em que Cristina consegue erguer-se na cama do hospital para dizer algo a Marius, no não-ouvido), as pistas para a compreensão do que está em causa na história. O confronto entre fé e razão, a utilidade (ou não) da religião, o (para alguns) incompreensível silêncio dos céus perante a barbaridade dos homens (Marius não é crente, ao contrário do agente que o acompanha, e cuja fé o irrita), e a desordem do mundo, que atingiu extremos tais, que nos leva a fazer o que de outra forma seria impensável, senão para a restaurar, pelo menos para a enfrentar.

Sob a sua placidez visual, o seu auto-controlo dramático e a sua impassibilidade geral, Milagre é um subtil e intrigante policial de rosto realista e fundo místico, que se resolve com uma das mais fugazes e poderosas manifestações sobrenaturais vistas recentemente no cinema. Um milagre suave e salvador, diríamos.

Escrito por
Eurico de Barros
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