Pouco antes da actual moda dos “Starter Packs” na Internet, houve outra, que embora breve, foi bastante significativa para os cinéfilos: a dos falsos trailers de filmes de sucesso mundial, tal como teriam sido realizados por Wes Anderson, gerados por Inteligência Artificial (IA) e feitos por fãs do realizador de Um Peixe Fora de Água, Moonrise Kingdom e O Grande Hotel Budapeste. Entre os melhores destes trailers brincalhões, todos eles pastiches impecáveis do inconfundível estilo visual de Anderson e que podem ser encontrados no YouTube, estão os de franchises como Guerra das Estrelas, The Matrix, O Senhor dos Anéis e Harry Potter.
Já antes o célebre programa Saturday Night Live tinha feito um sketch com a forma de um trailer de um falso filme de terror de Anderson, intitulado The Midnight Coterie of Sinister Intruders, onde Edward Norton finge ser Owen Wilson, um dos actores favoritos e regulares do realizador. Estas novas brincadeiras digitais em redor da peculiar estética de Wes Anderson levaram ao aparecimento de alguns artigos sisudos sobre os perigos da IA na sua aplicação ao cinema. Mas não se pode negar aos autores dos ditos trailers conhecimento dos tiques cinematográficos do cineasta, muito menos sentido de humor. E Anderson não reagiu mal aos ditos, sentindo-se até lisonjeado.
Eles são, aliás, uma manifestação da enorme popularidade do realizador e do culto que o rodeia. Os seus idiossincráticos filmes podem irritar muita gente e ser aclamados por outra tanta, mas nunca deixam os cinéfilos impassíveis ou desinteressados. O Esquema Fenício teve estreia mundial no Festival de Cannes, onde competiu pela Palma de Ouro, e foi feito após uma publicidade cómica assinada por Anderson para comemorar os 100 anos de um modelo das canetas Montblanc, que também interpretou, juntamente com Jason Schwartzman e Rupert Friend.
Passado nos anos 50 e descrito pelo próprio Wes Anderson como “uma mistura de filme sobre a relação entre um pai e uma filha, e uma história negra de espionagem global”, O Esquema Fenício foi escrito pelo realizador e por Roman Coppola, marcando a sexta colaboração entre ambos em termos de escrita de argumentos. Anderson disse também que a principal inspiração para o filme foi o nascimento da sua filha Freya. E que a sua mulher havia previsto que o feliz acontecimento, e o facto de ser pai pela primeira vez, de certeza o conduziria a fazer uma fita envolvendo um pai dedicado e a sua desvelada filha – ambos consideravelmente excêntricos, como não podia deixar de ser.
Em O Esquema Fenício, Benicio Del Toro interpreta Zsa-zsa Korda, um magnata das indústrias de armamento e de aviação apaixonado por arte clássica, e cuja vida é marcada por acontecimentos peculiares e características insólitas. Entre eles estão o ter sobrevivido a seis acidentes de aviação e ter dez filhos (com os quais não vive). A sua filha favorita, Liesl (Mia Threapleton) é uma freira noviça que se interessou e envolveu nos negócios da família, e que acompanha o pai para toda a parte, depois de ambos terem retomado contacto, muitos anos após a morte da mãe e de ela ter ido para o convento, e com a qual aquele se quer reconciliar. Com eles segue também o novo secretário/tutor artístico de Zsa-zsa, Bjorn (Michael Cera), um norueguês apaixonado por entomologia.
Zsa-zsa é execrado e vigiado de perto pelas grandes potências mundiais, e está empenhado em concretizar o “Esquema Fenício” do título, que ele concebeu para salvar as suas finanças, e para o qual precisa de deter a maioria do capital, partilhado por sócios mais ou menos suspeitos e por familiares que ou não o têm em grande conta, ou que o odeiam tanto que o querem matar. Mas o intrincado e bizarríssimo enredo de O Esquema Fenício é, mais uma vez, um cabide que Anderson utiliza para pendurar o seu formalismo a régua e esquadro, o gosto pelas encenações visuais inatacavelmente arrumadinhas, a simetria rigorosa, os dioramas em tamanho grande e “vivos”, e dominados pelas cores pastel, e a pormenorização microscópica.
Só que desta feita, o filme é melhor que os dois anteriores (excluindo o quarteto de contos de Roald Dahl que Wes Anderson adaptou para a Netflix, A Incrível História de Henry Sugar), o atravancadíssimo Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun (2021) e sobretudo o árido e amaneirado Asteroid City (2023), porque mais narrativo, menos distante e mais “vivo” emocionalmente. Isto devido, por um lado, à relação entre pai e filha e à sua evolução, e pelo outro à personagem de Zsa-zsa, decalcado de magnatas como Giovanni Agnelli, Aristóteles Onassis ou Calouste Gulbenkian, e que Benicio Del Toro preenche com consistência, humor e riqueza interior, tornando-a em algo mais do que uma das marionetas unidimensionais e extravagantes típicas do realizador.
No elenco de O Esquema Fenício, longo e muito variado, como também é habitual nos filmes de Anderson, encontramos nomes que já têm senha de presença neles, caso de Bill Murray (que faz de Deus bíblico), F. Murray Abraham, Rupert Friend, Willem Dafoe, Benedict Cumberbatch ou Scarlett Johansson. E que são acompanhados por estreantes no universo andersoniano como Tom Hanks, Charlotte Gainsbourg, Hope Davis, Jeffrey Wright ou Mathieu Amalric, uns com mais que fazer que outros, mas cujas personagens são todas obedientes à batuta do seu estrambótico demiurgo. Se não agradar totalmente aos que andam desiludidos com Wes Anderson desde Grand Budapest Hotel (e com a excepção da citada fita da Netflix), O Esquema Fenício poderá ser o primeiro para passo para uma reconciliação futura.