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Preocupada como anda a fazer filmes mastodônticos de super-heróis ou de acção esmigalha-esqueletos, ou então comédias alarves com um QI a rasar o chão, Hollywood passou a desprezar quase por completo as produções de médio e pequeno calibre, bem como formatos narrativos tradicionais, que já contribuíram com uma considerável série de bons filmes para o acervo do cinema americano.
Entre esses formatos constam a comédia romântica e o melodrama à maneira clássica, o buddy movie, ou filme de amigos, o road movie, que atira as suas personagens estrada fora, ou o odd couple movie, o filme sobre duos completamente desirmanados que acabam por encontrar coisas em comum e um território de entendimento mútuo.
Coube ao cinema independente, apesar dos seus orçamentos habitualmente diminutos, manter a continuidade desses formatos, quer siga as suas convenções, quer os refresque com alguma novidade. É o que acontece com O Falcão Manteiga de Amendoim, a estreia na realização de longas-metragens de Tyler Nilson e Michael Schwartz, que têm nos seus currículos um punhado de curtas e de documentários. O filme foi feito com um orçamento irrisório e conta entre os produtores com os de Uma Família à Beira de Um Ataque de Nervos.
O Falcão Manteiga de Amendoim passa-se no Sul profundo dos EUA e mistura elementos do filme de amigos, do road movie (embora aqui o carro seja substituído por uma jangada, e a estrada por um rio) e do odd couple movie. Zak é um rapaz de 21 anos com Síndrome de Down (tal como o seu intérprete, Zack Gottsagen, que não tem experiência de representação mas sai-se bem da tarefa). Abandonado pelos pais, foi desleixadamente atirado pela Segurança Social para um lar de terceira idade, do qual só quer fugir, para realizar o seu sonho: conhecer o seu ídolo, um wrestler chamado Saloio da Água Salgada, e dedicar-se também ao wrestling.
À terceira tentativa, Zak consegue mesmo evadir-se, escondendo-se no barco de Tyler (Shia LaBoeuf, muito mais aplicado e menos irritante do que é costume), um mecânico e pescador de caranguejos clandestino. Este está em fuga depois de ter deitado fogo às armadilhas de Duncan (John Hawkes), um rival e tipo de maus fígados, que ficou com a licença do irmão, morto num acidente de que Tyler teve a culpa, e que o assombra.
A princípio, Tyler quer é ver Zak bem longe, mas acaba por o acolher sob a sua asa após um incidente com um miúdo fanfarrão. Tyler tem como destino a Florida, onde quer começar uma vida nova, e promete a Zak deixá-lo na escola de wrestling dirigida pelo Saloio da Água Salgada, que fica a caminho.
Como Tyler não tem carro e afundou o seu barco durante a fuga, constroem ambos uma jangada e metem-se rio fora, ao som de música bluegrass, folk e espirituais. São perseguidos por Duncan e um capanga deste, e ainda por Eleanor (Dakota Johnson), a jovem bondosa mas também algo sufocante cuidadora de Zak no lar de onde se evadiu. Durante a jornada, uma série de peripécias irão ajudar Tyler e Zak a criar um laço de amizade quase fraternal, e contribuir para o advento do Falcão de Manteiga de Amendoim do título, a personagem de wrestler de Zak.
Há aqui um perfume do universo de Mark Twain (aliás, referido na fita a certa altura), tal como surge em livros como Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn, e embora Tyler Nilson e Michael Schwartz, aqui e ali, tropecem nalgumas convenções e num certo sentimentalismo reconfortante, o filme é constantemente sincero, excêntrico, sem afectação e caloroso.
E isto sem nunca se mostrar condescendente ou piedoso para com a personagem de Zak, através da qual os realizadores fazem passar, com subtileza, sem mão pesada de “mensagem”, um apelo para um tratamento mais compreensivo e menos mecanicamente burocrático das pessoas com Síndrome de Down.
Por Eurico de Barros