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Petite Fleur

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Petite Fleur
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A Time Out diz

3/5 estrelas

O realizador argentino Santiago Mitre entrelaça banalidade naturalista e comédia nonsense negra em ‘Petite Fleur’.

Fosse Petite Fleur um mau filme (que não é), pelo menos entraria para a pequena história do cinema como aquele que usa uma melodia clássica do jazz, a de Sidney Bechet que lhe dá o título, num contexto completamente insólito: uma comédia de crise conjugal dobrada de slasher movie divertidamente absurdo. Sempre que “Petite Fleur” se faz ouvir, há um crime sangrento executado com os mais variados objectos que podem ser encontrados numa casa, de uma faca de cozinha a uma pá de jardim, passando por um copo de vinho partido. Pormenor importante: o assassino e também a vítima são sempre as mesmas pessoas.

Este é o primeiro filme rodado em França pelo argentino Santiago Mitre, cujas últimas realizações foram de índole marcadamente política, La Cordillera (2017) e especialmente Argentina, 1985 (2022). José (Daniel Hendler) é um autor de banda desenhada e designer argentino, casado com uma francesa, Lucie (Vimala Pons). Têm uma filha bebé e vivem numa cidade não nomeada no interior de França. Quando José é inesperadamente despedido, Lucie vai trabalhar no jornal local para sustentar a família, enquanto o marido fica em casa a cuidar da menina. Esta situação vai introduzir algum mal-estar na vida da pequena família, tanto mais que Lucie não se adapta bem ao seu novo emprego.

Um belo dia, José vai bater à porta do vizinho do lado para pedir uma pá emprestada. O dito vizinho, Jean-Claude (Melvil Poupaud), é um solteirão bom vivant e abastado, que trabalha como consultor especializado em compra e encerramento de empresas, o que não lhe tira o sono nem lhe perturba minimamente a consciência, e um fanático de jazz. Após uma pequena altercação, José mata Jean-Claude espetando-lhe no pescoço a pá que tinha vindo pedir emprestada. Enterra depois a pá no jardim e vai para casa lavar-se, bem como à roupa suja de sangue, antes que a mulher chegue para jantar.

Qual não é o espanto de José quando, no dia seguinte, encontra Jean-Claude vivo e falando-lhe como se nada tivesse acontecido. Passa então a ir a casa dele matá-lo todos os dias, sempre de forma diferente e sempre que o vizinho põe “Petite Fleur” a tocar no gira-discos; e percebe que há uma relação entre o crime que comete diariamente na pessoa daquele, e o comportamento de Lucie. Santiago Mitre usa esta insólita sobreposição da banalidade naturalista e da comédia nonsense e negra para rodar um filme que é, ao mesmo tempo, a história de um casal numa crise conjugal que tem que ser resolvida, e um elogio da segurança e da estabilidade proporcionadas pela rotina (José é um homem de rotinas por excelência, e o que é o assassínio diário de Jean-Claude senão também uma rotina?).

Nem tudo resulta em Petite Fleur (o subenredo envolvendo um duvidoso “guru” de auto-ajuda “espiritual” interpretado por Sergi López é um bocado trapalhão, e é também pena que a personagem de Jean-Claude não participe mais activamente na história, tanto mais que Melvil Poupaud a compõe de forma brilhante), e o filme é daqueles aos quais ou aderimos logo à premissa narrativa, ou nos recusamos liminarmente a acreditar nela. Mas há que reconhecer que não é todos os dias que vemos um realizador arriscar, e de forma tão descarada e desconcertante, como Santiago Mitre arrisca em Petite Fleur.

Escrito por
Eurico de Barros
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