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Regresso ao Pó

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Regresso ao Pó
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A Time Out diz

4/5 estrelas

Uma inusitada, sensível e pausada história de amor e resistência à adversidade passada na China rural. O governo de Pequim censurou o filme de Ruijun Li.

O poder totalitário chinês não desvia os olhos do cinema nem por um instante. Uma das suas mais recentes vítimas é Regresso ao Pó, de Ruijun Li, que competiu no Festival de Berlim. Depois de ter estreado na China com algum atraso sobre o previsto, o filme tornou-se num sucesso de bilheteira, mas em Setembro passou a ser exibido com um fim diferente do original, acabando por ser retirado dos cinemas. Lançado então em streaming, Regresso ao Pó foi retirado após algumas semanas e as discussões sobre ele foram censuradas nas redes sociais. Alegadamente, os sectores mais nacionalistas do PC chinês acharam que dava uma imagem negativa do país e da acção do governo.

Passado numa pequena aldeia da China rural, Regresso ao Pó conta uma inusitada história de amor e de resistência à adversidade. Ma (Wu Renlin) é um camponês e o único de quatro irmãos que não se casou, e a família quer ver-se livre dele o mais depressa possível. O mesmo sucede com Cao (Hai-Qing), que é ligeiramente deficiente e sofre de incontinência, o que é mais um motivo de embaraço para os seus, que a puseram a viver num barracão nas traseiras da casa da família. O casamento de conveniência que as famílias de Ma e Cao combinam é-o apenas para estas, que se libertam do que consideram ser dois pesos mortos que só dão trabalho, despesas e, no caso da rapariga, vergonha. 

Mas Ma e Cao são, na verdade, almas gémeas na simplicidade, na bondade e no estoicismo. E contra todas as expectativas das famílias e da aldeia, apoiam-se mutuamente, e não só conseguem erguer uma casa com as suas próprias mãos, cultivar cereais e criar animais, como também construir a meias o lar que nunca tiveram e encontrar um no outro tudo o que de bom e de afectuoso lhes era negado antes. Há ainda o pormenor de Ca ter um tipo de sangue raro, o mesmo do homem mais rico da zona, que está doente e precisa de transfusões regulares. O que o torna, aos olhos da família deste, uma pessoa que tem que ser bem tratada, e lhe traz de arrasto um estatuto especial perante os autarcas e os representantes do partido locais.

É precisamente essa posição privilegiada que vai fazer do casal o primeiro beneficiário dos novos apartamentos que estão a ser construídos na região pelo governo, como parte da política de demolição das casas velhas e de um novo programa de habitação no interior do país. Só que Ma e Cao são camponeses por essência, vivem e labutam ao ritmo das estações e seguindo o calendário da natureza, e num pequeno apartamento num prédio de habitação são friamente arrancados à terra da qual e para a qual vivem, e que os faz felizes. Como diz Ma quando o levam a visitar o andar que lhes foi atribuído: “Mas como é que eu vou pôr aqui o burro, as galinhas e os porcos?”

Interpretado por uma célebre actriz chinesa e por um camponês com escassa experiência de representação e tio do realizador, e que funcionam perfeitamente um com outro, Regresso ao Pó é um filme pausado, discreto e sensível. Tal como Ma e Cao constroem lentamente e com segurança a sua vida em comum (não esquecer a ajuda preciosa do burro), assim Ruijun Li põe de pé o filme (rodado na sua aldeia natal), criticando em surdina mas com clareza a política de realojamento forçado dos camponeses pelo governo, e mostrando como os manda-chuvas locais e os funcionários do partido se entendem uns com os outros. O fim da história será tudo menos propício ao casal, porque a vida parece não reservar finais felizes para pessoas como Ma e Cao.

Daqui até os censores estatais acharem que Regresso ao Pó veiculava uma “imagem negativa” da China e o filme ser remontado, retirado das salas e finalmente subtraído ao streaming, foi apenas uma questão de tempo. Como tudo o mais na China, o cinema continua a ser rigorosamente vigiado.

Escrito por
Eurico de Barros
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