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Sem Deixar Rastos

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Sem Deixar Rastos
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A Time Out diz

4/5 estrelas

‘Sem Deixar Rastos’ recria uma história real ocorrida em 1983 na Polónia sob lei marcial, o assassinato do filho adolescente de uma opositora ao regime.

Um rapaz de 18 anos passa nos exames finais do liceu e vai celebrar com um amigo mais velho. Enquanto andam à procura dos amigos com os quais se combinaram encontrar numa grande praça da cidade onde vivem, fazem umas cavalhadas. Aparecem então dois polícias, que lhes pedem as identificações, os detêm e levam para a esquadra, onde o rapaz mais novo, após contestar a legitimidade da detenção, é brutalmente espancado. O chefe da esquadra chama uma ambulância e o rapaz é referido aos enfermeiros que chegam como “um drogado” que precisa de ser enviado para um hospital psiquiátrico, para onde é efectivamente conduzido. Levado para casa pela mãe, o rapaz tem depois que ser internado num hospital, onde acaba por morrer durante uma operação. O amigo revela entretanto que ouviu o chefe da esquadra dizer aos polícias que o espancaram para baterem no estômago “para não deixar rastos”.

Sem Deixar Rastos é precisamente o nome do filme do polaco Jan P. Matuszynski, que recria este caso, ocorrido em Maio de 1983 em Varsóvia, na Polónia comunista sob lei marcial, imposta pelo governo do general Jaruzelski em 1981. O rapaz assassinado chamava-se Gregor Przemyk e era filho de Barbara Sadowska, uma poeta crítica do regime, ligada ao movimento oposicionista Comité de Defesa dos Trabalhadores, que apoiava pessoas presas por actividades contra o governo. O governo polaco ficou com uma batata quente nas mãos, porque a polícia secreta já tinha detido e interrogado Sadowska por várias vezes, e ameaçado que o filho poderia sofrer represálias.

Foram então dadas ordens para que o processo entretanto posto por Barbara Sadowska contra as autoridades fosse bloqueado, que os polícias responsáveis pelo espancamento fossem ilibados e que a única testemunha, Jurek Popiel, o amigo do morto, fosse desacreditada, coagida ou convencida a mudar o depoimento, mesmo que isso implicasse “apertar” com a família dele. Este filme denso e crispado alia o detalhe da reconstituição documental ao dramatismo e à tensão do thriller, à medida que vai pormenorizando a forma como os mecanismos governamentais são activados para controlar, encobrir e resolver o caso a contento do Estado – intimidação de advogados, procuradores e testemunha, tentativas de descrédito desta na comunicação social controlada pelo partido, pressões sobre as famílias, bodes expiatórios tirados da cartola – e a forma como isso afecta os envolvidos.

Jan P. Matuszynski não esconde, por um lado, as vulnerabilidades pessoais de alguns dos principais actores do caso, aproveitadas pelo poder totalitário para os intimidar e desacreditar perante o público e em tribunal; e pelo outro, as dissensões e choques que se deram no interior do governo. E que levaram mesmo ao afastamento do procurador-geral da República, um legalista e um realista, que punha o respeito pelos trâmites legais e pela Constituição acima de tudo, mesmo das instruções do partido, acabando sacrificado ao peso político que o ministro do Interior, um general calculista e imperturbável, tinha no governo.

A evocação dos anos 80 num país de Leste totalitário e sob lei marcial é também ela pormenorizada e sugestiva. É um mundo de repressão institucionalizada, de burocracia de betão armado, de agentes da polícia política furtivos, manhosos e omnipresentes, e de uma decomposição moral transversal a todas as estruturas do poder. Sem Deixar Rastos foi o candidato da Polónia à nomeação ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e tem mais de duas horas e meia. Mas a história real e soturna que conta, a mão sempre firme do realizador, as interpretações e a recordação verista do que significa viver sob um regime concentracionário, justificam cada um dos 240 minutos de duração.

Escrito por
Eurico de Barros
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