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Uma carta aberta às varandas de Lisboa
Nunca estas plataformas salientes das fachadas dos nossos prédios foram tão importantes. E nunca as pessoas que fizeram delas marquises nos anos 80 e 90 estiveram tão arrependidas. É certo que os donos de uma marquise têm agora um espacinho extra para guardar o equipamento de ginástica que nunca mais usaram. Mas onde é que vão apanhar ar, sentir os primeiros odores da Primavera ou sorver uns raios de sol? As varandas de Lisboa estão mais ocupadas do que nunca. Vemos crianças a fazer bolas de sabão, adultos a apanhar banhos de sol e famílias inteiras a “almoçar fora” sem sair de casa. Uma varanda é um luxo. Uns pequenos metros quadrados empoleirados sobre a rua onde podemos fingir que há uma vida lá fora e nós fazemos parte dela. Os vizinhos que não se cumprimentam na escada dizem olá de uma varanda para a outra. As flores esquecidas a um canto são regadas como nunca antes. E até os passaritos pendurados em gaiolas parecem cantar mais alto – isso deve-se, sobretudo, à trégua que estamos a ter do trânsito e do aeroporto. Quem tem uma varanda pode fingir que está em casa porque quer. Que esta é uma Primavera igual às outras e que a distância de segurança é só aquela entre nós e o chão. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isenção e rigor, escreva ao provedor: provedor@timeout.com. + Leia aqui a Time I
Uma carta aberta ao açambarcador e outras novas espécies irritantes de lisboetas
Esse mesmo, o chico-esperto que tem agora a despensa cheia de papel higiénico e atum em lata. O homem ou mulher que se colocou na fila para fazer esgotar o gel desinfectante e os lenços de papel. Aqueles que se preparam para o apocalipse provocando, sem querer, vários pequenos apocalipses. O mundo pode acabar, mas há famílias lisboetas que têm papel higiénico suficiente para se disfarçarem de múmia no próximo Halloween. E atum que chegue para reproduzir a feijoada de inauguração da Ponte Vasco da Gama recorrendo a um tipo de peixe enlatado rico em ómega três. Será que as compras destas últimas semanas estão na mesma sala dos jerricans de combustível adquiridos durante a greve dos motoristas de matérias perigosas? O açambarcador tem um forte sentido de sobrevivência, mas um péssimo sentido de comunidade. São pessoas muito individualistas – ou, então, gente que produz matéria fecal em quantidades tão abundantes que não consegue viver sem ter quilómetros de papel absorvente à sua disposição. Seja como for, de certeza que estes açambarcadores não sabem para que serve um bidé. Mas esta não é a única espécie de lisboeta irritante que surgiu nas últimas semanas. Existem também os praticantes de uma actividade radical chamada “isolamento colectivo”. Parecem as pessoas que vão para junto do mar ver as ondas gigantes em dias de tempestades, arriscando-se a ser levados por elas. Será falta de amor próprio ou um tremendo egoísmo? Ou uma mistura destas duas virtudes aparentemente contradi
Uma carta aberta aos periquitos de Lisboa
Lisboa não é uma cidade tropical, muito menos por estes dias. Se tudo correr bem vamos manter-nos no Hemisfério Norte para sempre e um ano vai continuar a poder dividir-se em quatro, como a pizza quatro estações. O aquecimento global desafia esta hegemonia meteorológica, mas há outra coisa a fazer-nos duvidar da nossa localização geográfica. É um som. Não é um canto, um chilrear ou um piar. É um “crrrrááá”. O berro estridente dos periquitos de Lisboa. Estas criaturas esverdeadas de bico cor de laranja andam aos pulos de ramo em ramo nos principais jardins de Lisboa. Podem ser avistadas na Estefânia, Alvalade e Lumiar, mas o Jardim da Estrela parece servir de morada para a maior família desta espécie invasora. Não são uma ave autóctone e não se sabe ao certo de onde vieram. Mas a história que se conta é que um dia um periquito e uma periquita fugiram de uma gaiola e foram por aí a fora a reproduzir o mito de Adão e Eva – a reproduzirem-se, portanto. Se ouvir um dos seus "crááás" incline a cabeça para cima, repare nas suas espectaculares asas verdes e imagine que está no Rio de Janeiro e não na Avenida do Brasil. Estes passaritos são um lembrete voador da adaptabilidade das espécies e da diversidade de Lisboa. Assim como as andorinhas assinalam a Primavera, os periquitos de Lisboa lembram-nos que o Inverno não vai durar para sempre. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. S
Uma carta aberta aos abutres das imobilárias
De certeza que a vossa caixa de correio já foi invadida por uns divertidos panfletos com a mensagem: “Temos muitas pessoas interessadas no seu imóvel”. Por regra, cada um desses prospectos contém uma foto de um agente imobiliário de braços cruzados e um sorriso branqueado à custa de chorudas comissões. Esta é a abordagem mais comum destes proactivos comissários da especulação imobiliária. Mas há outras: os originais brindes da agência (do sempre prático íman de frigorífico à esferográfica, do tapete de rato à pen USB) e as acções de sensibilização porta a porta. Nestes momentos de telemarketing ao vivo, os agentes ou os seus enviados elogiam a qualidade do nosso imóvel e contam fábulas encantadoras sobre os seus clientes franceses que terão todo o gosto em adquiri-lo por números estratosféricos. E depois, é claro, há os cartazes espalhados pela cidade com as reluzentes fronhas destas senhoras e senhores, como se as varandas de Lisboa se tivessem transformado numa deprimente caderneta de cromos. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isenção e rigor, escreva ao provedor: provedor@timeout.com. + Uma carta aberta aos vizinhos que não separam o lixo.
Uma carta aberta aos vizinhos que não separam o lixo
Há dias em que vamos aos contentores e parece que alguém decidiu fazer ali uma instalação artística. Uma escultura onde estão equilibradas precariamente caixas de cartão, sacos de plástico cheios de lixo-mistério e um sortido de pacotes e garrafas de plástico. Será o nosso vizinho daltónico? Ou será alguém que utiliza o lixo doméstico como forma de expressão? Vamos pela segunda opção: é um vizinho que gosta de exprimir a sua imbecilidade. O lixo da cidade divide-se em quatro categorias simples: vidro, plástico e metal, papel e indiferenciado. Isso obriga todos os cidadãos à difícil tarefa de associar a cada um destes materiais uma cor diferente. Um exercício que um anúncio antigo conseguiu provar que estava ao alcance de um chimpanzé. Mas o estado de muitos contentores desta cidade faria Darwin duvidar da sua teoria de A Origem das Espécies. O Natal é uma altura crítica para estas pessoas que fazem uma interpretação livre das regras da reciclagem. Os caixotes transformam-se em arenas de batalha e o cartão empilha-se, desafiando a gravidade. No meio de tudo isto, quem sofre mais são os homens e mulheres que andam pela madrugada fora a recolher o lixo. Estes heróis deparam-se frequentemente com puzzles verticais que são, também, monumentos à falta de civismo.
Uma carta aberta ao marco do correio
É possível afirmar, com algum grau de certeza, que existem hoje mais homens chamados Marco a trabalhar nos correios do que marcos do correio. Essas pequenas gavetas cilíndricas sorvedoras de matéria postal são tão raras que, sempre que vemos uma em Lisboa, nos perguntamos: será que alguém se esqueceu de tirar isto daqui? Ou ainda: será que este táxi de onde acabo de sair era afinal uma máquina do tempo que me transportou de volta aos anos 90? São uma relíquia de outros tempos, o testemunho de uma vida sem e-mails, sms e mensagens rápidas. Uma altura em que, para fazer chegar uma mensagem a outra pessoa, tínhamos de pôr um pouco da nossa saliva num selo. Em que parte das nossas trocas de mensagens usamos a saliva hoje em dia? Nenhuma. É uma pena. Os marcos do correio são uma espécie em vias de extinção, os pandas do serviço postal. Os poucos que ainda conseguimos encontrar estão maltratados, ao abandono, como se a privatização dos CTT os tivesse enviado para a pré-reforma sem qualquer tipo de compensação. Há muita coisa a desaparecer na cidade e muita coisa a mudar. Se os marcos do correio fossem maiores e mais altos, podia ser que ainda alguém se interessasse por eles e os transformasse num hotel. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isenção e rigor, escreva ao provedor: provedor@timeout.com. + Uma
Uma carta aberta ao vizinho que fecha a porta com um estrondo
Será o caro vizinho um ser dotado de uma força sobrenatural? Estará a tentar lidar de forma trapalhona com um recém-adquirido superpoder? Alguma justificação tem de haver para os estrondos que se ouvem todos os dias, sempre que o gentil coabitante entra e sai de casa. Todos os prédios têm pelo menos um inquilino destes. Por vezes é o mesmo homem ou mulher que sobre e desce as escadas como se calçasse sapatos de betão. E não, este ruidoso espezinhar nada tem a ver com o peso da pessoa que está em cima dos pés. É uma atitude perante a vida. A mesma atitude que faz com que estas pessoas encarem cada porta como um pesado portão de uma quinta. Será gente tão zelosa das suas posses que fecha todas as portas como se pertencessem a um cofre gigante? O mais curioso deste arquétipo da má vizinhança são os horários. Pelo ribombar que se ouve nas escadas de madrugada ou de manhã cedo, diríamos que são todos padeiros ou guardas nocturnos. “Acordem todos! Aqui vou eu a caminho do serviço”, parece anunciar este ruidoso cavalheiro. Mas nem tudo é mau. Se forem pontuais, estes vizinhos podem até ajudar-nos a acertar o relógio e a saber a quantas andamos. Para quem se levanta às 08.00, um “BA BAM!” às seis da manhã traz aquela alegria adocicada de saber que ainda temos mais duas horas para dormir. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse a
Uma carta aberta a Lisboa, Capital Verde
Já ouviram falar de Obasil? Até ao início deste ano, ninguém fazia ideia o que era Obasil. Mas desde que Lisboa se gaba em mupis e outdoors de ser a Capital Europeia Verde 2020 que Obasil nos fere a vista. Mas o que é Obasil? É a palavra “Lisboa”, tal como aparece escrita no logótipo e em toda a comunicação que existe sobre este esverdeamento momentâneo da cidade. Parece uma marca desenhada por um fanático por anagramas – “Ora vamos lá ver se alguém descobre a palavras escondida!”. Um desafio de palavras cruzadas à escala nacional. A publicidade, o design e a comunicação de massas é uma das indústrias que entrega mais prémios a si própria. No entanto, passam-se anos sem um anúncio de jeito, um outdoor que fique na memória, um slogan decente ou um jingle trauteável. Imaginem uma série de prémios de pesca – Maior Robalo, Cação do Ano – a serem entregues no deserto. É assim nas chamadas “indústrias criativas” que deram à luz este Obasil. Mas o Provedor do Lisboeta tem uma sugestão: algum empreendedor alfacinha que crie rapidamente uma marca chamada Obasil e aproveite toda esta publicidade gratuita. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isenção e rigor, escreva ao provedor: provedor@timeout.com. + Uma carta aberta ao co-living + Uma carta aberta aos rompe-filas
Uma carta aberta ao co-living
“Co-living”, ora aqui está uma palavra que traz consigo os ventos da mudança. Mas esses ventos trazem também o cheiro nauseabundo da especulação imobiliária. Vamos por partes. O “co-living” consiste em dividir casa, tal como se faz nas residências de estudantes. É uma versão amadurecida e semipermanente daquele fim-de-semana num hostel durante um interrail. Em bom português isto tem um nome: dividir casa. Na novilíngua da gentrificação chama-se “co-living” e está na moda, assim como a gripe está na moda. De acordo com as brochuras, o co-living “é um modo de vida”. Não é um prédio onde vários desconhecidos partilham áreas comuns – é uma comunidade. Não é um sítio onde a casa de banho partilhada tem várias escovas de dentes e ninguém sabe ao certo qual é a sua – é a melhor maneira de fazer novos amigos. Cada inauguração de um destes espaços em Lisboa é apresentada como um passo em frente, “uma nova forma de viver a cidade”. Mas a fina camada de sofisticação que envolve este conceito desfaz-se com a unha do dedo mindinho. E o que vemos são dormitórios glorificados a servirem de única solução para jovens incapazes de arranjar casa a preços decentes. O “co-living” existe porque o preço do metro quadrado em Lisboa não pára de subir. O que nos leva a pensar que, se calhar, quando morrermos vamos ter de ir todos para a mesma vala comum – que na altura se chamará “co-dying”. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam c
Uma carta aberta aos rompe-filas
“Quero só perguntar uma coisa”, diz a senhora acabada de chegar ao balcão dos CTT, ignorando o sistema de senhas e todas as pessoas à espera. Em seguida, ficará debruçada no balcão a tentar esclarecer um assunto que se tornará cada vez mais complexo, empatando o funcionário durante largos minutos e levando ao desespero uma pequena multidão. Os rompe-filas funcionam assim. Aproximam-se dos seus alvos de mansinho, emanando confiança, convencidos de que estão no direito de desrespeitar a ordem de chegada ou o bom senso. É gente que parece que existe apenas para curar pessoas com excesso de paciência. O rompe-filas desenvolveu com o passar dos anos uma audição selectiva, que lhe permite ignorar os rabujos das pessoas ignoradas, e uma eloquência muito própria que faz com que qualquer empregado de uma repartição pública se sinta na obrigação de escutar a sua incrível história. Toda a localidade, por mais pequena que seja, tem o seu representante da arte de evitar bichas. São as mesmas pessoas que levam carrinhos cheios para a caixa de dez unidades, ultrapassam pela direita, ainda não aprenderam como funcionam as rotundas e põem o carro em segunda fila, com os piscas ligados, para “ir só ali”. Se calhar vão “só ali” romper uma fila “só para perguntar uma coisa”. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isençã
Uma carta aberta às lojas de lâmpadas
O Provedor quer começar por pedir desculpa aos seus leitores por se debruçar esta semana sobre um tema tão específico. Mas como entidade não-oficial responsável por dar voz aos humores dos lisboetas e autor da mais respeitada coluna de irritação colectiva, não pode deixar de referir este curioso fenómeno. Já repararam na quantidade de lojas de lâmpadas que existem em Lisboa? E já viram o tamanho dessas lojas? Agora pensem: qual foi a última vez que precisaram de ir a correr comprar uma dessas ampolas luminescentes. Há bairros onde é difícil encontrar uma padaria, uma farmácia ou um banco. Mas lá numa esquina qualquer estará, muito bem iluminada, uma loja de lâmpadas e candeeiros. Não interpretem mal este desabafo. As lâmpadas são importantes. Sem elas seria impossível brincar às sombras chinesas e os abat-jours tornar-se-iam estranhos chapéus. Mas se praticamente todos os supermercados, hipermercados, minimercados e lojas de electrodomésticos vendem lâmpadas, quem é que vai a uma loja da especialidade para adquirir um objecto tão comum? Imaginem uma loja que vende apenas aqueles tapetes feios que se põe à entrada dos apartamentos. Já agora, alguém sabe onde se compram esses tapetes feios? O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isenção e rigor, escreva ao provedor: provedor@timeout.com. + Uma carta ab
Uma carta aberta aos homens do lixo
Há quem se queixe que fazem barulho. Que arrastam os caixotes pelos passeios. Que assobiam a altas horas da noite. E isso é tudo verdade. E também é verdade que não se pode mover os caixotes de sítio sem os arrastar, que não se recolhe o lixo sem fazer barulho e que, ao fim da noite, também há uns quantos pássaros a assobiar. Os homens do lixo são heróis. Trabalham a horas em que ninguém quer trabalhar e lidam com uma matéria-prima que ninguém quer - literalmente. Por altura do Natal os caixotes do lixo da cidade enfeitam-se com papel de embrulho rasgado e caixas de cartão. Os contentores ficam a abarrotar de espinhas de bacalhau e restos de couve cozida, conferindo um odor especial às ruas da cidade. Mas quem tem de lidar de perto com este problema são pessoas que passam a noite penduradas, à chuva e ao vento, num camião que acelera pelas ruas estreitas da cidade. Por vezes, nos famosos grupos de vizinhos do Facebook, há pequenos movimentos anti-Almeidas, com indivíduos barafustando com o barulho e os horários. Mas pior do que acordar estes cidadãos exemplares a meio da noite é não fazer nada. Os senhores até poderiam dormir descansados, mas as nossas ruas (e os nossos narizes) nunca mais teriam descanso. O Provedor do Lisboeta é um vigilante dos hábitos e manias dos alfacinhas e de todos aqueles que se comportam como nabos e repolhos nesta cidade. Se está indignado com alguma coisa e quer ver esse assunto abordado com isenção e rigor, escreva ao provedor: provedor@timeout.c